Kids pretos tentaram proteger Bolsonaro, Braga Netto e a elite do Exército

Por Marina Amaral

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Em tantas perguntas sobre planejamento do crime contra a democracia que envolvia matar os eleitos para comandar o país em 2022 – o presidente Lula e seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) –, a mais difícil de responder até agora é por que, afinal, malogrou o minucioso e documentado plano, acessado e tornado público pelas investigações da Polícia Federal (PF), que finalmente resultaram no indiciamento de Jair Bolsonaro, do general Braga Netto e de outras estrelas golpistas. 

Talvez o ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, Mauro Cid, ameaçado de rescisão da delação premiada, tenha dado mais detalhes em seu depoimento no STF. No momento em que escrevo esta newsletter, na quinta-feira à tarde, ainda não se sabe tudo o que ele falou para manter os benefícios da delação, como a proteção a seu pai, o general Mauro Cesar Lourena Cid, que também integrou as forças especiais. 

O certo é que Mauro Cid, que teve sua nomeação para o Comando de Operações Especiais de Goiânia, que reúne quatro batalhões de kids pretos (agentes das forças especiais do Exército), suspensa no governo Lula, poupou enquanto pôde Bolsonaro e Braga Netto, apenas confirmando por fim que o general liderou, no dia 12 de novembro, uma reunião em seu apartamento na qual o “planejamento operacional para a atuação dos ‘kids pretos’ foi apresentado e aprovado”, de acordo com a investigação prévia da PF. 

As intenções golpistas de Braga Netto já estavam documentadas em mensagem por ele enviada em meados de dezembro (e acessada depois da apreensão de seu celular na mesma operação de fevereiro deste ano), chamando de “cagão” o então comandante do Exército, o general Gomes Freire, por pular fora do golpe.

Gomes Freire, que chegou a participar de duas reuniões em que minutas do golpe foram apresentadas aos comandantes das Forças Armadas, também era kid preto, como revelou postagem no WhatsApp do general Mário Fernandes, já preso e, ao que tudo indica, o chefe direto dos demais kids pretos envolvidos na operação. 

Em resposta à imprensa sobre os kids pretos, o Exército confirmou que há 2,5 mil militares nas forças especiais e que elas existem desde 1957, data do primeiro Curso para Operações Especiais na Vila Militar, no Rio de Janeiro. E nada mais explicou.

Garimpando informações nos sites do Exército, vemos que na ditadura, meses antes do AI-5, foi criado o Destacamento de Forças Especiais, subordinado ao Centro de Instrução Pára-quedista General Penha Brasil (CI Pqdt GPB). Essa foi a origem do 1o Batalhão de Forças Especiais, criado em 1983 e desde 2002 subordinado ao Comando de Operações Especiais (COpEsp), com batalhões em Goiânia (os que seriam comandados por Mauro Cid) e em Manaus, a 3a Companhia de Forças Especiais.

Entre as façanhas desse destacamento de forças especiais estaria a tentativa de recrutamento de paraquedistas do esquadrão Para-Sar, em 1968, para realizar operações terroristas que seriam atribuídas à esquerda, incluindo a explosão do Gasômetro, no Rio de Janeiro, com potencial para causar milhares de mortes, frustradas por insubordinação do capitão Sérgio Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco, às ordens de seu superior, o brigadeiro João Paulo Burnier, de triste memória. 

Os paraquedistas das forças especiais atuaram também nos anos 1970 no combate à Guerrilha do Araguaia, que terminou com a execução de 41 militantes, como confirmou, em tumultuado depoimento à Comissão Nacional da Verdade, o general Álvaro de Souza Pinheiro, que participou da operação. Curiosamente, o Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOpEsp), responsável pela formação dos militares das forças especiais, era comandado, até 2022, por seu filho, o coronel Álvaro de Souza Pinheiro Filho. 

Conheci o general Pinheiro antes de ele surtar à beira da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, em abril de 2020, ao resistir armado a policiais militares que impediam a circulação no local durante a quarentena da covid. Tentei ouvi-lo em uma entrevista, em 2016, interrompida por ele aos berros, quando perguntei sobre a relação entre sua atuação nas forças especiais da ditadura e a consultoria que dizia prestar naquele momento à segurança da Olimpíada, como “especialista em guerra irregular”, como se apresentava. Treinado pelos “boinas verdes” dos Estados Unidos, frisava o general. 

Ao que tudo indica, essas forças treinadas para operações de sabotagem em “contexto político sensível” e outras técnicas de “guerra irregular” permaneceram ativas, mas quase invisíveis até serem detectadas na organização das ações terroristas de 8 de janeiro e agora, no envolvimento direto com planos de assassinato para derrubar a democracia. 

Antes disso, em 2021, o Intercept já havia publicado uma reportagem revelando um exercício em que os candidatos às forças especiais participavam de uma operação de combate simulada contra um exército marxista fictício “nascido de uma dissidência do Partido dos Operários e que recruta e treina militantes do MLT”, referências óbvias ao PT e ao MST. De uma turma de quase 40 alunos, 17 foram aprovados para trabalhar no Comando de Forças Especiais, sediado em Goiânia.

O apelido “kid preto” ainda não aparecia nessa reportagem (a primeira que vi utilizar o termo foi a de Allan Abreu na revista piauí, em 2023), mas não é difícil traçar uma linha direta entre as forças especiais na ditadura e os kids pretos da tentativa golpista. Ao que tudo indica, com o conhecimento de altas patentes das Forças Armadas, que jamais atuaram para condenar os crimes de 1964 e varrer o golpismo de seus quadros. 

Chega de operações secretas e forças especiais voltadas para o combate de “inimigos internos”. Sem o controle e a transparência do Exército, não há democracia.