A resistência à diminuição da jornada é mais de natureza política, de natureza disciplinar do capitalista, do que propriamente econômica
Sim, você não precisa se submeter às condições que eu coloco para você unilateralmente. Você pode sair porque tem oferta de trabalho em outros lugares. Ou seja, isso favorece quem vive de salário, a classe trabalhadora. E talvez seja aí um ponto delicado que explica a resistência dos empresários à redução da jornada. Porque, veja, eu disse agora mesmo que, do ponto de vista do giro da economia, isso favorece a todo mundo no médio prazo. Você vai vender mais porque tem mais gente com renda para consumo.
Então, o capitalista deveria gostar disso. O empresário deveria gostar disso. Por que ele não gosta? Porque, não só no início que ele fica temeroso de ter que gastar mais com contratação, mas principalmente porque, se o emprego está muito alto, o desemprego está baixo, o poder dele sobre os seus funcionários no âmbito da sua empresa, do seu negócio, tende a diminuir. Porque a classe trabalhadora fica mais fortalecida quando você tem um desemprego baixo.
Ou seja, a resistência à diminuição da jornada é mais de natureza política, de natureza disciplinar do capitalista, do que propriamente econômica. Porque economicamente vai aumentar no médio prazo o número de vendas, o volume de vendas e de lucro do capitalista. Mas vai diminuir essa ingerência do capitalista sobre a gestão da força de trabalho dele, porque o trabalhador vai ficar mais fortalecido em termos estruturais.
A sociedade do trabalho que temos é uma sociedade do trabalho adoecida. Física e, principalmente, mentalmente
Pelo outro lado, o trabalhador na escala 6×1, cansado, também favorece o capitalismo? Porque esses trabalhadores tão cansados não vão ter nem forças pra tentar lutar pelos seus direitos.
De fato, fica todo mundo exausto, estressado. A escala 6×1 massacra todo mundo em geral, deixa todo mundo cansado, extenuado. Mas em particular, mulheres, e mulheres negras, que acumulam, muitas vezes, com o trabalho do cuidado e o trabalho doméstico. As pessoas ficam mais preocupadas em descansar no pouco tempo disponível que têm. A sociedade do trabalho que temos é uma sociedade do trabalho adoecida. Física e, principalmente, mentalmente.
O alto consumo de psicotrópicos e de medicamentos psiquiátricos é para dar conta das demandas, para conseguir suportar. Então, não deixa de ser uma forma de manter as coisas estabilizadas através de você manter todo mundo exausto o tempo todo. E eu acho que é por isso mesmo que você tem esse movimento grande na luta pela mudança dessa escala. Porque o pessoal está cansado de estar cansado.
Em 1988, a Constituição reduziu o tempo máximo de trabalho de 48 para as atuais 44 horas semanais. Em alguns países ricos, está se adotando a semana 4×3. Isso pode virar uma tendência mundial?
Bom, aqui é mais difícil por algumas razões. É mais fácil nos países desenvolvidos, primeiro, porque os salários médios são mais altos. O que diminui, por exemplo, a tentação entre os trabalhadores de pegar hora extra não é tão necessário. O salário baixo daqui é o primeiro obstáculo. O segundo obstáculo é a resistência patronal, que é mais forte aqui do que lá. Porque, assim, ela é proporcional à resistência da classe trabalhadora, falando aqui da força do movimento sindical.
Esse é um fator que pode dificultar: quão forte ou quão enfraquecido está o nosso movimento sindical para poder levar essa luta adiante? Esses seriam os principais obstáculos para o sucesso dessa medida. Entre os próprios trabalhadores pode ter uma resistência porque, como o salário é baixo, ele fica mais tentado a adotar a hora extra para aumentar o rendimento, ainda que a médio prazo com a redução da jornada a tendência geral é o salário médio aumentar.
Temos no Brasil ainda um outro fator, que é a informalidade muito elevada no nosso mercado de trabalho. A lei atenderia quem está no mercado formal. Ou seja, entre 40% e 50% da população que está economicamente ativa ficaria de fora disso, porque é uma massa que trabalha à revelia da lei trabalhista.
E poderia até gerar mais informalidade? Ao invés de contratar como CLT, as empresas poderiam contratar como PJ?
O aumento da informalidade é um risco, sim, principalmente nos setores econômicos e nos estabelecimentos econômicos menores. Nas grandes indústrias, nas grandes empresas, a informalização é mais difícil de acontecer. No capitalismo, a tendência é sempre ir aumentando o tamanho das empresas. E a empresa maior fica mais obrigada a obedecer vários tipos de normas e regulamentos. Tem mais fiscalização.
Temos que também ter em mente que essa pejotização, essa MEIização da força de trabalho já é um processo que marcha há bastante tempo. Esse é um obstáculo sério, mas a gente também pode ver por um outro lado. Uma vez que você tem uma quantidade significativa de pessoas no mercado de trabalho que são celetistas, se a redução de jornada virar lei, os efeitos benéficos passam a ser percebidos socialmente. Na verdade, eu acho que isso poderia gerar um movimento de contrafluxo em relação à tendência anterior, de pejotização. Os trabalhadores começariam a pressionar para voltar para o sistema anterior, para o sistema celetista.
Como é que esse enfraquecimento dos sindicatos, principalmente depois da reforma de Temer, influencia na garantia dos direitos dos trabalhadores?
O movimento sindical sempre foi, na história do capitalismo, um fator de defesa dos interesses imediatos da classe trabalhadora e que, inclusive, tem impactos econômicos. Porque se o sindicato está lá para defender uma remuneração mínima ou então um aumento da remuneração, há um efeito econômico. Isso não afeta positivamente só a vida do trabalhador individual, mas afeta também positivamente a economia como um todo.
O movimento sindical tem essa dupla dimensão. No Brasil, historicamente, o sindicalismo é dificultado no seu processo de fortalecimento. Primeiro, porque a nossa economia tem um dinamismo muito baixo. Então, são muitas ocupações precárias. E onde você tem ocupação precária, você vai ter também uma dificuldade maior de construção de movimentos operários, movimentos trabalhadores organizados. Estou dizendo que é difícil sim, impossível não. Tanto é que a gente vê já, por exemplo, nos segmentos de pessoas que trabalham com aplicativos de entrega, de transporte passageiro, uma organização surgindo. Isso é uma tendência, o pessoal leva aquela lapada do capital, aí sofre, depois vai se organizando para resistir.
Você está otimista com esse movimento agora dessa PEC, com essas questões de trabalho voltando a serem discutidas?
Eu primeiro fiquei surpreso com a repercussão. Aliás, positivamente surpreso. E também serve como um indicador de que, como falamos aqui no início, a questão do trabalho no mundo moderno está sempre colocada, a importância dele não pode ser nunca minimizada e uma prova está aí, que as pessoas estão entrando nessa discussão. Me parece que tem muita gente a favor da medida, justamente porque não é necessário você trabalhar tanto, nem mesmo do ponto de vista da produção da riqueza, porque, se você aumenta a produtividade da economia, você produz mais ou tanto quanto produzia antes em menos tempo, o que libera mais tempo para você poder descansar, tomar conta das outras esferas da vida, ficar com a família, se divertir, etc.
Está sendo discutido e repercutido, e isso é importante para pensar o que essa sociedade do cansaço procura nos negar: o direito de ficar refletindo sobre a vida, sobre o que a gente quer e o que a gente não quer.
Ou inclusive se informar, se instruir, porque o avanço dos sistemas informatizados uma hora chegará em todo lugar. Isso nos coloca um desafio: temos que ir atrás daquilo que não pode ser substituído por uma máquina, ou por um algoritmo, ou por um sistema de inteligência artificial. O que é humano no processo e que realmente não pode ser reproduzido? A nossa capacidade como artífices, a nossa capacidade inventiva, a nossa capacidade criativa, aquilo que faz a humanidade ser o que é. Nós somos uma espécie que inventa e se reinventa o tempo todo. Robô nenhum vai fazer isso. Nenhum sistema de inteligência artificial é capaz de pensar como nós somos capazes de pensar.
A despeito dos obstáculos para a PEC passar, eu acredito que, em algum momento, vai acabar passando, porque o mundo anda, as economias mais desenvolvidas seguem avançando e as influências disso chegam para nós. Temos razões para ficarmos otimistas, pelo menos em relação a ter jogo. Está sendo discutido e repercutido, e isso é importante para pensar o que essa sociedade do cansaço procura nos negar: o direito de ficar refletindo sobre a vida, sobre o que a gente quer e o que a gente não quer. Eu acho que essa PEC já teve um ponto positivo, só de ter acendido uma lâmpada na cabeça de muita gente: “é realmente necessário que eu trabalhe seis dias? Não dá para ser diferente?”. Isso já é alguma coisa e não é pouca coisa.
O post Redução da jornada de trabalho: “a resistência é mais política do que econômica”, diz sociólogo apareceu primeiro em Marco Zero Conteúdo.