Depois do “kit gay” e da “mamadeira de piroca”, os bolsonaristas agora inventaram o “kit drogas”. Com preconceito e uma visão considerada distorcida por especialistas sobre o que é a política de redução de danos, quiseram transformar em caso de polícia o espaço de acolhimento e cuidados da Escola Livre de Redução de Danos para usuários de drogas no Carnaval de Olinda. Nesse contexto, a máquina de ódio e fake news construiu seu mais recente alvo nacional: Ingrid Farias, 34 anos, mulher, negra, mãe e moradora da periferia do Recife. A ativista de direitos humanos, coordenadora da Escola, chegou a receber mensagens privadas de ameaças, dizendo que ela merecia morrer de overdose e que não deveria ter filhos.
A casa Fique Suave no Carnaval chegou a ser fechada na segunda-feira (20), mas voltou a funcionar no dia seguinte e nada de ilegal, ilícito ou qualquer tipo de flagrante foi encontrado pela Polícia Civil. No espaço, havia distribuição gratuita de água e kits de redução de danos com preservativos, protetor solar, sedas e outros itens, além da venda de lanches. Foram disponibilizados também materiais informativos sobre os riscos e efeitos do consumo excessivo de álcool e de outras substâncias e ainda estratégias preventivas de redução de danos.
Taxada pelos bolsonaristas como destruidora de lares, Ingrid tem sido acusada publicamente nas redes sociais de fazer apologia ao consumo de drogas. Sem autorização, sua imagem rapidamente foi parar em perfis como o de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro; Rodrigo Manga (Republicanos), prefeito de Sorocaba (SP); Nikolas Ferreira (PL-MG), deputado federal mais votado do Brasil com apenas 26 anos; e Clarissa Tércio (PP), deputada federal por Pernambuco, fundamentalista e negacionista, investigada pelos atos golpistas de 8 de janeiro e condenada por transfobia.
A redução de danos é uma estratégia de saúde pública que visa promover o bem-estar social e busca controlar consequências adversas causadas pelo consumo de psicoativos através de uma abordagem antiproibicionista e da inclusão social de usuários de drogas. Esse tipo de política é reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e regulamentada pelo Ministério da Saúde.
Com medo, Ingrid, que já tinha agenda marcada em Brasília, resolveu antecipar a viagem. Facilmente reconhecida na rua, pretende mudar o cabelo quando retornar ao Recife e irá avaliar onde passará os dias seguintes. “Eu tenho tentado, nas últimas semanas, tirar minha imagem das redes sociais dessas pessoas, mas não estou conseguindo. É incrível que, quando eles denunciam, as coisas caem. Mas, quando é a gente, mesmo com milhares de pessoas denunciando as postagens de ódio em todo o Brasil, as publicações continuam no ar”, lamenta Ingrid em conversa com a Marco Zero.
“Na segunda-feira de Carnaval (quando a casa foi fechada pela polícia), eu não sabia ainda como estava a repercussão. Depois que vi a minha divulgação nesses perfis, fiquei muito apreensiva, era uma semana em que iria ficar com meu filho. Na quarta-feira de Cinzas, à noite, em Olinda, policiais me reconheceram, apontaram para mim, me cercaram, ficaram falando coisas. Eu fui embora da festa porque não estava me sentindo segura”, relata.
“Minha maior preocupação é com os desdobramentos de violência que essas pessoas podem fazer e com a descredibilização do meu trabalho. Ser uma mulher negra e ocupar um espaço de visibilidade política é algo que não se constrói do dia para a noite”, reforça.
Essa não é a primeira vez que Ingrid é criminalizada. No ano passado, ela foi intimada pela vereadora Missionária Michele Collins (PP) depois que a Escola Livre de Redução de Danos recebeu voto de aplauso na Câmara Municipal do Recife. A parlamentar usou um vídeo da ativista no Carnaval de 2020 para criticar e tentar criminalizar o trabalho dela e da organização. Como resposta, Ingrid também publicou um vídeo em sua defesa e em defesa da Escola. Foi aí que Michele a processou por danos morais. “Meu filho, na época, presenciou o oficial de justiça me abordar com violência num bar em que a gente almoçava na frente de casa”, relembra.
A ativista, graduada em Biologia, está sendo apoiada por um corpo de advogados e advogadas populares, incluindo o Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop), a mandata coletiva das vereadoras Pretas Juntas (PSOL) e o próprio jurídico da Escola Livre de Redução de Danos. Uma articulação em defesa dela também está sendo montada a nível federal, com interlocução com representantes dos ministérios dos Direitos Humanos, Saúde e Justiça, reafirmando o trabalho da ONG e da política de redução de danos.
Segundo Ingrid, esta semana a Escola ainda recebeu intimação da Polícia Civil de Pernambuco para prestar depoimentos. A denúncia realizada contra a casa Fique Suave no Carnaval foi anônima. O deputado estadual Joel da Harpa (PL), policial militar da reserva, denunciou o imaginário “kit drogas” nas redes sociais e pediu o fechamento da Escola. Com essa narrativa, conseguiu emplacar matérias em alguns portais locais de notícias.
“Eles não têm argumentos científicos nem técnicos. A partir disso, construíram uma fake news, afinal é mais fácil absorver a opinião pública a partir de grandes jargões e polêmicas”, reflete Ingrid.