Uma única empresa.

E o caminho todo para entender o modus operandi do comércio internacional de ouro ilegal. Com todas as suas teias.

Por trás de um mero CNPJ, está uma complexa rede transnacional.

Apontada em investigação da Polícia Federal (PF) como a principal peça na comercialização do metal proveniente de garimpo irregular do Pará, a Amazônia Comércio Importação e Exportação é parte, na verdade, de uma teia muito maior. Com todas as peças conectadas entre si por pessoas que em algum momento tiveram alguma relação.

A TEIA:

Um levantamento minucioso de documentos públicos por esta reportagem revela que a Amazônia Comércio e a empresa para a qual ela exporta o ouro nos Estados Unidos, a Ororeal, pertencem aos mesmos proprietários. Partes de uma “coordenação de pessoas jurídicas para a escrituração do ouro ilegal”. E mais: ambas se conectam em seus históricos de sócios com a Coluna DTVM, uma “Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários”. “DTVMs’ são as empresas ligadas ao sistema financeiro e que têm autorização do Banco Central para aquisição de ouro. No histórico da Amazônia Comércio estão ainda Shelda Bedê e Rogério de Souza Ferreira, o Pará, duas lendas do vôlei de praia mundial, que foram sócios da empresa entre 2015 e 2019. Ambos não são parte da investigação da PF, mas o período em que estiveram na empresa está dentro do tempo investigado por irregularidades e pela estruturação da teia de ilegalidade. Ambos negam qualquer ilegalidade da empresa no período. (Ver ao longo da reportagem).

Uma investigação recente da Polícia Federal mostrou que entre outubro de 2016 e março de 2021, a Amazônia Comércio Importação e Exportação enviou 9.600 quilos de ouro para fora do Brasil. Total movimentado no período: R$ 2,18 bilhões. Boa parte do sucesso da empreitada se deu através da utilização de uma empresa offshore localizada em paraíso fiscal, destino das exportações. E da utilização já comprovada, em determinado período, de notas fiscais com indícios de fraudes. De acordo com o descrito pelo juiz federal substituto da 4ª Vara Federal Criminal do Pará, Gilson Jader Gonçalves Vieira Filho nos despachos da operação, a companhia foi protagonista de um “elaborado esquema internacional de esquentamento de ouro proveniente de garimpo ilegal”.

A PF encontrou a Ororeal LLC na ponta da operação, no papel de compradora do ouro da Amazônia Comercial no exterior. Com sede no estado americano de Delaware, paraíso fiscal mais procurado na atualidade do que clássicos na modalidade como Suíça, Luxemburgo, Singapura, Ilhas Cayman e Panamá, de acordo com o relatório Financial Secrecy Index, publicado pela instituição inglesa Tax Justice Network.

Com um patamar de manutenção de sigilo inigualável ao redor do mundo, o estado transformou-se no endereço predileto para abertura de negócios em que o proprietário, eventualmente, pode ocultar dinheiro obtido de forma ilícita ou integrar capital que já esteja oculto, abreviando assim o processo de lavagem e transformando em capital lícito o que aparenta ser lícito.

DOCUMENTOS ENCONTRADOS PELA REPORTAGEM LIGAM AS PONTAS E REVELAM QUE OFFSHORE EM PARAÍSO FISCAL TEM MESMO PROPRIETÁRIO QUE EMPRESA BRASILEIRA

A PF não apontou na peça investigatória os proprietários da Ororeal LLC, que não constam nos documentos americanos da empresa, pelo sigilo garantido na lei de Delaware.

No entanto, apesar da confidencialidade de Delaware, a reportagem da Agência Sportlight de Jornalismo encontrou uma ponta solta na teia que envolve a Ororeal e a Amazônia Comércio: uma empresa de nome OR Holding Comércio, Importação e Exportação, aberta em 6 de novembro de 2018 e sede em São Paulo, que tem como proprietária a Ororeal. O rastro deixado que possibilita percorrer a totalidade da cadeia ilegal.

Como mostram os registros da Junta Comercial de São Paulo (Jucesp), a representante da Ororeal LLC na brasileira OR Holding é Marina Galo Alonso, que consta como procuradora. E nos papeis da OR Holding no Brasil, aparece o nome do proprietário da Ororeal LLC: Isaac Cula Fuhrmann.

A mesma Marina Galo Alonso que aparece também na Amazônia Comércio como procuradora de Isaac Fuhrmann. Em resumo: exportadora e importadora na verdade são dos mesmos proprietários.

Isaac Fuhrmann é um venezuelano naturalizado americano, que passou a ser sócio da Amazônia Comércio em 2017. Sigilosa em Delaware, a Ororeal exibiu seus donos na junta comercial de São Paulo como sócios da OR Holding: Isaac Fuhrmann, constando com endereço em Nova Iorque. O mesmo sócio da Amazônia Comércio.

A sigla LLC é a abreviação de Limited Liability Company (empresa de responsabilidade limitada). Assim, os membros de uma LLC não são pessoalmente responsáveis pelas dívidas ou obrigações da empresa.

A modalidade, usada por empresas legais, também é procurada por criminosos porque facilitam os caminhos para a lavagem de dinheiro por diversas razões:

-Anonimato e falta de transparência

-Flexibilidade operacional (as LLCs têm menos regulamentações e obrigações de relatórios em comparação com outras formas de negócios nos Estados Unidos)

-Facilidade de transferência de propriedade: (é mais fácil transferir a propriedade de uma LLC, o que pode permitir a transferência rápida e anônima de ativos ou fundos entre diferentes entidades ou jurisdições, dificultando o rastreamento de atividades de lavagem de dinheiro).

AS CONEXÕES ENTRE A AMAZÔNIA COMÉRCIO E A COLUNA DTVM

Os registros da Amazônia Comércio mostram também conexões no histórico da empresa e uma “DTVM” (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários): a Coluna DTVM. A Coluna DTVM está em nome de Marcelle Mascaro Nardino. A mesma proprietária da Amazônia Comércio desde a abertura da empresa, em 2002, até 27/11/2015, quando deixa a sociedade, de acordo com os papeis.

No entanto, chama a atenção que em 6 de outubro de 2015, cerca de um mês antes de se retirar da Amazônia Comércio, os registros mostram que Marcelle Mascaro Nardino alugou um imóvel em São Paulo para ser a nova sede da empresa em contrato de 12 meses de locação que está em cartório de São Paulo.

EMPRESA NEGA CONEXÃO COM OFFSHORE MAS CONFRONTADA COM DOCUMENTOS NÃO RESPONDE MAIS PARA REPORTAGEM

Uma outra ligação une Coluna DTVM e Amazônia Comércio na teia do comércio de ouro ilegal: o nome da Coluna DTVM consta também junto com a Ororeal em Delaware, na “Ororeal LLC – Coluna S.A. DTVM”, que aparece no mesmo endereço americano da “Ororeal LLC” já citada.

Questionada pela reportagem, a Coluna DTVM afirmou que a única relação com a Amazônia Comércio foi uma compra de ouro em 2020, e negou taxativamente qualquer relação com a Ororeal.

No entanto, a reportagem, em réplica, citou o conhecimento do registro de empresa chamada “Ororeal LLC– Coluna S.A. DTVM”, com sede em Delaware, e inscrição no Brasil. Diante da réplica, a Coluna DTVM não voltou a ser tão taxativa e afirmou em resposta que “em relação a solicitação complementar, informamos que por se tratar de dados antigos, em torno de 2016, estamos buscando arquivos necessários para o levantamento  de informações”. (ver íntegra das respostas ao fim). E não voltou a se pronunciar ou enviar o “levantamento de informações”.

A Ororeal, além da sede no paraíso fiscal de Delaware, consta tamb´ém em registro na Suíça, aberta em 2021. Na condição de “compradora de ouro”. As relações comerciais da empresa suíça se deram preferencialmente com França, Índia, Emirados Árabes e Rússia.

A Coluna DTVM é uma entre as 8 DTVMs do Brasil atuando como “Posto de Compra de Ouro” (PCO), que funciona como um braço da DVTM junto ao garimpo, adquirindo o ouro bruto. Um relatório do Instituto Escolhas, especializado em mineração, cita a “Coluna” como ligada a Anoro (Associação Nacional do Ouro), comandada por Dirceu Frederico Sobrinho, investigado como um dos maiores líderes do comércio ilegal de ouro no país. Na ocasião, a DTVM negou qualquer envolvimento ilegal.

LENDAS DO VÔLEI MUNDIAL FORAM SÓCIOS DA AMAZÔNIA COMÉRCIO

Dois expoentes da história do vôlei de praia mundial também foram sócios da Amazônia Comércio Importação e Exportação.

Shelda Kelly Bruno Bedê, a Shelda, e Rogério de Souza Ferreira, o Pará, constavam como proprietários da empresa entre novembro de 2015 e janeiro de 2019.

Ambos não estão citados na investigação de compra ilegal de ouro da PF. A presença dos dois na sociedade, constatada pela Agência Sportlight de Jornalismo através do exame dos registros da Jucesp, está dentro de boa parte do período levantado pela instituição em que a empresa é investigada pelo esquema de aquisição de ouro extraído em áreas ilegais e posteriormente exportado, e em que a teia de pessoas jurídicas para o comércio de ouro ilegal é montada.

A reportagem enviou pedido de resposta para casa de câmbio que consta em nome de Shelda Bedê na receita federal. Em resposta, que veio através de Rogério de Souza Ferreira, foi dito que “na época só comprávamos de instituições financeiras. Não houve nenhuma compra ilegal no período em que estivemos na empresa. Qualquer comprovação poderá ser feita através de levantamento das NFs desde o início até a data em que deixamos a sociedade”. (ver íntegra da resposta ao fim da reportagem).

Na investigação, a PF afirma sobre compras ilegais tornadas legais: “apurou-se que essas empresas exportadoras contaram com a coordenação de outras pessoas jurídicas, para a escrituração fiscal do ouro ilegal que seria comercializado, tendo sido percebido que foram – estas últimas – as responsáveis por conferir aparência de legalidade ao minério, maquiando-se a documentação da primeira compra do ouro e seus reais vendedores e/ou origem desse minério, a partir de fraudes nas escrituras fiscais (emissão de Notas Fiscais)”.

EX-ATLETAS ESTIVERAM NA SOCIEDADE DESDE 11/2015 a 1/2019. INVESTIGAÇÃO DA PF APONTA FRAUDE EM BOA PARTE DESSE PERÍODO: ENTRE 10/2016 A 3/2021

Pelos registros da junta comercial de São Paulo, onde a Amazônia Comércio está registrada, Shelda e Rogério Ferreira entraram na empresa em novembro de 2015 e saíram em 7 de janeiro de 2019, quando vendem suas cotas para Isaac Fuhrmann Cula, cidadão venezuelano radicado nos Estados Unidos. Isaac Cula já tinha entrado na Amazônia Comércio em 2017, formando com Shelda e Pará a sociedade, até comprar a totalidade em 2019. Ato seguinte, o venezuelano/americano nomeia Marina Galo Alonso como administradora.

CASA DE CÂMBIO TEM RELAÇÃO COM EX-ATLETAS, COM DTVM INVESTIGADA E COM EX-SÓCIA DA AMAZÔNIA COMÉRCIO

Em 22 de janeiro de 2016, menos de dois meses depois de Shelda Bede e Rogério Ferreira entrarem na sociedade da Amazônia Comércio, é aberta a Monere Câmbio e Turismo, no Rio de Janeiro. A casa de câmbio e agência de viagens tem Shelda Bedê entre os acionistas. E o e-mail do estabelecimento que consta na receita federal é no apelido de Rogério Ferreira, o Pará.

A Monere Câmbio aparece na relação do Banco Central de “correspondentes cambiais” duas vezes. Uma delas com a “Coluna S.A. DTVM”, que está em nome de Marcelle Mascaro Nardino, a ex-sócia da Amazônia Comércio.

Correspondente cambial é uma empresa autorizada a realizar operações de câmbio em nome de outra empresa, atuando como intermediário na compra e venda de moedas estrangeiras e também na remessa de divisas para o exterior.

A TRANSNACIONAL DO OURO:

8/2/2002- Marcelle Mascaro Nardino abre a Amazônia Beneficiadora Indústria e Comércio de Metais.

19/10/2015: A Ororeal LLC é aberta no paraíso fiscal de Delaware (Eua).

6/10/2015: Cerca de um mês antes de se retirar da Amazônia Comércio, os registros mostram que Marcelle Mascaro Nardino alugou um imóvel em São Paulo para ser a nova sede da empresa em contrato de 12 meses de locação que está em cartório de São Paulo.

27/11/2015- Marcelle Mascaro sai e vende sua parte pra Shelda Bedê e Rogério Ferreira em cotas iguais. O nome muda para Amazônia Comércio Importação e Exportação Ltda e a sede sai de Manaus pra São Paulo.

22/1/2016- Com a participação de Shelda Bedê, é aberta a Monere Câmbio.

9/3/2016- A Monere Câmbio passa a ser “correspondente cambial” da “Coluna S.A. DTVM”, autorizada pelo Banco Central para operações de câmbio em nome da outra e remessa de câmbio. A “Coluna S.A. DTVM” aparece em nome de Marcelle Mascaro Nardino, que vendeu a participação para Shelda Bedê e Rogério Ferreira na Amazônia Comércio.

5/5/2016- Com sede em Delaware, no mesmo endereço da Ororeal LLC, é aberta a Ororeal LLC – Coluna DTVM.

16/10/2017- Isaac Furhmann Cula  entra na sociedade da Amazônia Comércio. Shelda Bedê vende uma parte e vira minoritária, Rogério Ferreira segue com o mesmo capital e é nomeado procurador de Isaac Furhmann Cula. O nome passa a ser Amazônia Trading.

06/11/2018: é aberta em São Paulo a OR Holding Comércio, Importação e Exportação. Nos registros, o nome de Isaac Furhmann Cula, sócio da Amazônia Comércio, aparece como o proprietário da Ororeal LLC, de Delaware.

7/1/2019 – Shelda Bedê e Rogério Ferreira deixam a Amazônia Comércio. Isaac Furhmann Cula fica sozinho. Marina Galo Alonso vira administradora sem capital e procuradora de Isaac Furhmann Cula.

23/2/2022- Marina Galo Alonso passa a ter 20% das cotas. Isaac Furhmann Cula segue majoritário.

CURRÍCULO DE LENDAS DO VÔLEI DE PRAIA

Shelda e Rogério de Souza Ferreira tem currículo e histórias de conquistas de primeira linha do vôlei mundial.

A atleta foi duas vezes vice-campeã olímpica (Sidnei 2000 e Atenas 2004), jogando ao lado de Adriana Behar. E ganhou o circuito mundial por 7 vezes.

Rogério Ferreira, o Pará, ficou conhecido como parceiro de Guilherme Marques durante anos. Jogaram juntos as Olimpíadas de Atlanta, 1996, ficando em 9º lugar. Conquistaram o mundial de 1997 e o circuito mundial de 1998, e no mesmo ano venceram o Goodwill Games, em Nova Iorque.

Outro lado:

Rogério de Souza Ferreira (Pará) e Shelda Bede:

A reportagem pediu o posicionamento dos dois através da Monere Câmbio e Turismo, que está em nome de Shelda Bede. A resposta veio através de Rogério de Souza Ferreira, por e-mail. Segue na íntegra:

“Em relação a nossa participação na Amazônia esclareço que a Shelda foi apenas uma sócia investidora. Eu trabalhei sim, mas na minha época só comprávamos de instituições financeiras. Não houve nenhuma compra ilegal no período em que estivemos na empresa. Qualquer comprovação poderá ser feita através de levantamento das NFs desde o início até a data em que deixamos a sociedade. Ficamos surpresos com o fato ocorrido mas estamos tranquilos com relação a nossa isenção no caso. Ficamos a disposição para quaisquer esclarecimentos”.

Coluna DTVM:

A reportagem questionou a empresa sobre suas relações com a “Coluna DTVM” e com a Ororeal. A primeira resposta da “Coluna DTVM” foi a seguinte:

“Em atenção ao questionamento que nos foi endereçado, informamos que a Coluna DTVM e/ou seus sócios nunca foram titulares da Ororeal. A Coluna DTVM não tem qualquer participação nas relações comerciais da empresa Ororeal. Em relação à empresa Amazonia Comércio, a Coluna DTVM informa que tão-somente vendeu ouro à referida empresa em abril de 2020 e depois disso não mais manteve qualquer relação comercial com a mesma”.

A reportagem replicou, questionando então a razão de existir uma empresa chamada “Ororeal LLC – Coluna DTVM”, também com sede em Delaware. A empresa enviou nova resposta já não afirmativa como na primeira, e informando que:

“Em relação a solicitação complementar, informamos que por se tratar de dados antigos, em torno de 2016, estamos buscando arquivos necessários para o levantamento  de informações”. No entanto, não voltou a responder.

Marina Galo Alonso:

A sócia da Amazônia Comércio, atual Amazônia Trading, está foragida e a reportagem não obteve contato.

Isaac Furhmann Cula:

A reportagem não obteve contato. Em caso de contato, iremos acrescentar a resposta aqui.

Tags:
Mineração ilegal | Ouro | Reportagem | Shelda | Vôlei