Lute como uma paraibana

Por Inácio França

Lute como uma paraibana

Solânea (PB) – Produção de alimentos orgânicos, gestão coletiva de equipamentos e insumos, decisões tomadas em comunidade, cuidado com os recursos naturais e a biodiversidade. Para quem não conhece a serra da Borborema, na Paraíba, essa parece a descrição de uma utopia, mas é assim que milhares de famílias da região estão melhorando de vida enquanto enfrentam o aumento do calor e a diminuição das chuvas, principais efeitos do aquecimento global no semiárido brasileiro.

E isso não acontece por acaso nem surgiu do nada. A explicação está na luta das mulheres paraibanas.

Quem dá a pista para entender o papel das mulheres na Borborema é Maria do Céu Batista dos Santos: “Estamos dentro de tudo”. Ou seja, elas fazem parte de todas as formas de organização e mobilização social que acontecem.

A própria Maria do Céu é diretora do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Solânea, integra a Associação Comunitária do Videl, localidade onde vive, e é coordenadora do Polo Sindical da Borborema – uma articulação de sindicatos rurais e associações de 13 municípios. A motivação foi herdada da mãe, Terezinha, “que tá no ‘movimento’ desde a luta pela terra com Margarida Alves”.

Aqui, vale uma pausa para lembrar de quem Maria do Céu está falando:

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Margarida Maria Alves liderou homens e mulheres que trabalhavam nas usinas, engenhos e fazendas da Paraíba do final da década de 1960 até 1983, quando foi assassinada por pistoleiros profissionais a mando de latifundiários da região. Ela presidiu o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoas Grande por 12 anos, período em que a entidade processou centenas de vezes os proprietários de terra por descumprimento dos direitos trabalhistas. Na época, eram raros os patrões que assinavam carteira de trabalho, pagavam 13º salário ou não colocavam crianças para trabalhar no corte da cana ou na colheita de abacaxi.

Sua memória inspira a Marcha das Margaridas, manifestação em que mulheres do campo realizam em Brasília a cada quatro anos desde 2000, e a Marcha pela vida das mulheres e pela Agroecologia, onde mulheres tomam as ruas de alguma cidade da Borborema e já vai na 15ª edição em 2024.

A articulação dos sindicatos no Polo Borborema, os mutirões e os fundos rotativos onde se faz a gestão coletiva de recursos sem interferência do poder público, são heranças das lutas travadas antes mesmo da redemocratização do país, em 1985, conforme explica Adriana Galvão Freire em sua dissertação de mestrado em Agroecologia pela Universidade Internacional da Andaluzia, na Espanha. Adriana é uma das coordenadoras da AS-PTA, organização não-governamental que atua na Paraíba desde 1993.

Mulheres estão presentes em todos os sindicatos do Polo, mas em alguns, como o de Solânea, ocupam os cargos da diretoria com ampla maioria. São elas também que estão à frente da rede de quitandas, lojas que comercializam os produtos da agricultura familiar da região, principalmente da marca criada pela Cooperativa Borborema, a Do Roçado, cujo carro-chefe é o flocão para cuscuz feito com milho orgânico.

Foi a geração de Maria do Céu, ou simplesmente Céu, quem assumiu o legado de Margarida e de quem lutou com ela. “Quando eu era criança já existia aqui a cultura de emprestar alimentos para os vizinhos que precisavam. Um pouco de café, cuscuz, farinha ia e vinha de um sítio para o outro. Isso a gente já fazia, mas agora fazemos em outra escala e dentro de um sistema organizado”, conta, durante um encontro na sede da Associação dos Pequenos Produtores de Bom Sucesso, Palmas e Goiana, comunidades distantes quase 20 quilômetros do Videl, onde mora.

Mais espaço social, mais peso político

O protagonismo feminino na condução das organizações sociais no semiárido paraibano se explica também pelo papel que elas passaram a exercer na estrutura da agricultura familiar. Com a migração dos maridos e filhos mais velhos para as capitais nordestinas ou estados da região Sudeste em busca de trabalho, alguém precisava garantir a alimentação de quem ficava. As mães, esposas e filhas assumiram essa tarefa e esse espaço.

Aos poucos, como diz Adriana Galvão em seu trabalho “reconquistaram e ressignificaram o quintal doméstico como área de propriedade e domínio da mulher, promoveram sua reorganização produtiva; a geração de renda e a aquisição de bens”.

Hoje, naquela porção do agreste da Paraíba os homens já não precisam migrar, mas ainda há quem trabalhe “para fora”, mesmo que seja construindo cisternas nos projetos de ONGs ou do governo. A casa e o sítio permanecem sob cuidados das esposas. Assim, era inevitável que passassem a interagir umas com as outras nos mutirões, fundos rotativos e encontros de capacitação.

Os desdobramentos são descritos assim por Adriana Galvão: “os ambientes criados para troca de conhecimentos foram essenciais para estimular a inovação por meio da experimentação técnica, e para a quebra do isolamento das mulheres. Elas se reconhecerem como uma identidade coletiva, passaram a formar uma base social. Nos espaços de construção de conhecimento, foram forjando sua ação política, baseada na construção de uma proposta feminista, que, aos poucos, foi redefinindo a construção da agroecologia”, explica a coordenadora de AS-PTA, que acompanhou de perto esse processo.

A descrição de um dia “comum” na vida de uma dessas mulheres dá ideia do papel exercido por elas. Todos os dias, Verônica de Macena Santos, de 45 anos, acorda antes do nascer do sol para “cuidar do roçado bem cedinho, depois vou cozinhar o café da manhã e o almoço, cuido das crianças antes de irem para a escola, dou ração e troco a água dos animais, boto roupa na máquina pra lavar e limpo a casa”. Depois, ainda participa das reuniões da associação comunitária ou do sindicato.

Ate as pendências com bancos, impostos e demandas nos serviços de saúde, é ela quem resolve.

Sua filha Letícia, de 20 anos, confirma que sua rotina de recém-casada é parecida com a da mãe, com a diferença dela ainda não ter filhos. Bem humorada, mostra o bíceps: “na roça a gente não faz academia, não. Isso aqui é de tanto carregar lata de água para dar de beber para os porcos”.

O relato de mãe e filha deixam claro que uma coisa não mudou na Paraíba: a divisão do trabalho doméstico. Maria do Céu, Maria Helena Maurinete, Marília, Josefa Vanda e a agende de saúde Maria José, as outras mulheres que, naquele dia nublado no final de maio, se reuniram no salão da associação confirmam que, além de assumir tarefas que antes cabiam aos homens, também precisam fazer aquilo que suas mães e avós sempre fizeram em casa.

Todas elas, porém, dizem acreditar que a próxima geração de homens e mulheres consiga fazer diferente. Cidinha, uma jovem de 19 anos do sítio Videl, comunidade distante 25 quilômetros de onde vivem Verônica e Letícia, encarna a esperança das suas conterrâneas.

Cidinha e os vegetais

Na Serra da Borborema, crianças e adolescentes são estimuladas pelos adultos a tomar contato com noções de agroecologia em redes de viveiros de mudas. Maria Aparecida da Silva mal tinha completado 12 anos quando entrou em um desses grupos.

Prestes a fazer o Enem pela segunda vez para tentar cusar Agroecologia o campus da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) que fica entre Solânea e a vizinha Bananeiras, Cidinha conta que aprendeu a preparar mudas enchendo de areia os saquinhos de plástico preto onde os meninos e meninas um pouco mais velhos colocavam as sementes, regavam e distribuem nos viveiros cobertos pela tela que eles mesmo aprendiam a instalar para “quebrar” a luz do sol e reduzir o calor.

“Comecei a tomar gosto, a não exagerar no estrume, a colocar água na medida certa de cada planta. Isso mudou minha cabeça. Quando eu era criança eu só pensava em sair do sítio, ir morar na cidade, mas participar do movimento mudou meu pensamento”, recorda Cidinha, apelido de Maria Aparecida da Silva.

A falta de água era o que mais desmotivava os jovens a seguir na zona rural, mas com a chegada das cisternas o cenário mudou. “Eu lembro que meus pais e meus avós tinham de trazer água nos burros, era meia hora andando até o barreiro. Com uma dificuldade daquelas ninguém queria plantar”, recorda.

Em seu viveiro, ela tem mais de mil mudas de espécies diferentes. Hoje é ela quem orienta as crianças sobre os ciclos e exigências da glirícidia, moringa, leucena, barriguda, aroeira, baraúna, além da goiaba, da pinha, umbu, caju e graviola. A maior parte das mudas é cultivada nos 16 hectares de sua família, mas ela também distribui entre adolescentes da vizinhança para que montem seus próprios viveiros.

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