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Cara leitora, caro leitor, vamos imaginar que você recorra ao Judiciário a fim de garantir um direito já reconhecido pelo mais alto tribunal do país, mas o juiz do seu caso, em vez de decidir ou encaminhar para um colegiado de magistrados decidir, escreve o seguinte: “Essa controvérsia […] não será resolvida apenas com uma decisão judicial”. Em seguida, abre uma “conciliação” por meio de uma “comissão especial” que ele próprio vai presidir. Nessa comissão estarão as mesmas pessoas que tentaram cassar o seu direito e defendem a tese central anteriormente derrotada no mesmo tribunal.
É exatamente o que está acontecendo no Supremo Tribunal Federal (STF) com os processos abertos por partidos políticos e organizações indígenas e indigenistas da sociedade civil contra a recente lei (nº 14.701/2023) aprovada pelo Congresso Nacional em uma retaliação ao STF. Em setembro de 2023, o tribunal sepultou a fabricada tese jurídica de um “marco temporal” sobre a demarcação de terras indígenas no Brasil. Tal marco inexiste na Constituição do país. O Congresso, tomado por forças anti-STF, se insurgiu contra a decisão e aprovou uma lei. Lei, por sinal, incapaz de mudar a Constituição.
O julgamento do “marco temporal” foi encerrado em setembro passado após anos de adiamentos e uma angustiante expectativa para os povos indígenas. Acabou com uma vitória acachapante dos indígenas. Por 9 votos a 2, o STF declarou inconstitucional a tese ruralista. O relator do processo (a Reclamação nº 1.017.365) foi o ministro Edson Fachin, que gastou meses, quiçá anos a fio, estudando e analisando cada aspecto da matéria (ele se posicionou contra o “marco” e seu voto-relatório terminou vitorioso no julgamento). Fachin tornou-se, assim, o maior especialista no tema dentro do STF.
Mas o Judiciário brasileiro sempre guarda as suas surpresas impressionantes. Apenas quatro meses depois da decisão em plenário, eis que o ministro do STF Gilmar Mendes se torna, por sorteio, relator de um processo movido por partidos de direita (PP, PL e Republicanos) sobre o mesmo tema do “marco temporal” (“em favor da integralidade da lei 14.701”). Na sequência, o ministro recebe da Secretaria Judiciária do STF outros quatro processos sobre o mesmo assunto e se torna, assim, o relator de todos eles. Essas outras ações judiciais questionam justamente a lei que o Congresso produziu para tentar legalizar aquilo que o Supremo já havia dado como inconstitucional.
Organizações da sociedade civil alertaram, em pelo menos dois dos processos conduzidos por Mendes, sobre a necessidade de “imediata redistribuição por prevenção” para Edson Fachin, conforme ressaltado pelo Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), um órgão da Igreja Católica.
A maior organização indígena do país, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), apontou para a “ausência de manifestação do relator [Mendes]” sobre o tema da prevenção. A Apib salientou: “(i) previsão regimental da distribuição por prevenção, (ii) similaridade entre as causas de pedir, os pedidos e conexão entre os objetos do recurso extraordinário e da ADI 7.582 e (iii) necessidade de coibir decisões conflitantes ou contraditórias”.
Sem resposta sobre esse ponto, a Apib teve que peticionar à parte ao STF, uma manifestação transformada em “petição” (nº 12.709). Em junho, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, solicitou à Secretaria Judiciária do tribunal que informasse “sobre os critérios da distribuição”. A secretaria reconheceu que “deixou-se de apontar a prevenção” e citou pelo menos três motivos, entre os quais “não haver coincidência de objetos” entre a reclamação relatada por Fachin e a ação declaratória de constitucionalidade ajuizada pelos partidos de direita.
Sério que não? Vamos lembrar: uma, julgada até pelo plenário, declarou inconstitucional a tese do “marco temporal”. A outra pretende que o STF declare a constitucionalidade de uma lei que cria… “o marco temporal”. No direito, tudo, ou quase tudo, é interpretação.
Em outra petição, o Cimi apontou que a decisão tomada por Mendes no curso desses processos não abordou o pedido principal dos autores das ações, que era a suspensão imediata dos efeitos da Lei 14.701/2023. Segundo o Cimi, a decisão teve ainda “os seguintes vícios”: “foi omissa na apreciação da distribuição por prevenção”, “foi omissa na apreciação dos pedidos cautelares das ADIs [ações diretas de inconstitucionalidade] no tocante à suspensão da eficácia da lei” e “deu providência distinta do que foi pedido e, de ofício, deu início às tratativas conciliatórias”.
Mendes se autoconcedeu o papel de presidente da “comissão especial” e marcou o dia 5 de agosto próximo para o início dos trabalhos. Ele pretende ser o solucionador, conforme escreveu, de “uma desinteligência que necessita de mudança de rumos”.
Decidiu ainda que a comissão deverá “apresentar propostas de solução para o impasse político-jurídico em todas as ações de controle concentrado, sob minha relatoria, sem prejuízo de abarcarem [sic] outras demandas em curso nesta Corte, após aquiescência dos respectivos relatores”. Além disso, deverá “propor aperfeiçoamentos legislativos para a Lei 14.701/2023, sem prejuízo de outras medidas legislativas que se fizerem necessárias, voltados à superação do impasse e novo diálogo institucional”.
Ao STF cabe, entre outros papéis, o de “guardião da Constituição”, ou seja, processar e julgar processos à luz do texto constitucional. Nos últimos 10 ou 15 anos, contudo, alguns de seus ministros têm adotado a “conciliação”. É uma prática bastante recente no tribunal. Até a década de 2000, era praticamente inexistente. Por todos os efeitos que provoca e ainda vai provocar, esse instrumento precisa passar por um intenso escrutínio público. Essas “conciliações” não tratam de meras brigas de vizinho, muitas vezes resolvidas nos Juizados de Pequenas Causas.
A proposta de “conciliação” sobre o “marco temporal” passará por “disposição política” e “negociação”, como o próprio Mendes escreveu: “Considero importante registrar que, para sentar-se à mesa, é necessário disposição política e vontade de reabrir os flancos de negociação, despindo-se de certezas estratificadas, de sorte a ser imperioso novo olhar e procedimentalização sobre os conflitos entre os Poderes, evitando-se que o efeito backlash seja a tônica no tema”.
Mendes, assim, não só criou a comissão, também explicou como ele acha que seus membros devem se comportar. Ele também listou entidades e órgãos que podem se sentar à mesa da “conciliação”. Entre outros, citou a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), duas entidades profundamente políticas, grupos que fazem pressão política em Brasília em favor de suas bases, muitas das quais hoje dominadas pelo ruralismo. Não fica claro o critério utilizado para tal escolha, já que prefeitos não são partes em processos de demarcação de terras indígenas deflagrados pela Funai. Por que não, por exemplo, as associações de antropólogos, historiadores, indigenistas, ambientalistas, professores e pesquisadores acadêmicos?
Um dos principais indigenistas do país e cofundador do Instituto Socioambiental (ISA), Márcio Santilli salientou a impropriedade de cobrar dos povos indígenas uma “conciliação” sobre os seus próprios direitos. Em artigo para a Mídia Ninja, apontou: “É óbvio que a culpa pelas pendências nas demarcações e pela persistência de conflitos não é dos povos indígenas. Portanto, a conciliação pretendida não poderia implicar restrições aos seus direitos”.
Em nota técnica, o Cimi lembrou “a completa impossibilidade de negociação e acordo sobre direitos indisponíveis previstos no art. 231 da Constituição Federal de 1988, a exemplo de limites de territórios tradicionais, direitos socioculturais, ambientais, bem como o usufruto exclusivo das terras indígenas”.
É claro que Mendes levará adiante sua “conciliação”. Ele entende que deve conceder “à sociedade” a sua “nova chance de ser pacificada para que seja possível alcançarmos os objetivos da República Federativa do Brasil enunciados no art. 3º da Constituição Federal”, conforme escreveu. São palavras bonitas que cairiam muito bem na boca de um senador da República.
A estratégia de substituir decisões judiciais por conciliações pode ser aplicada a respeito de quase todos os assuntos polêmicos da vida nacional. Os salários, palestras e viagens dos ministros do STF, por exemplo, são temas que dividem a sociedade. Precisam ser “pacificados”. Que tal o STF convocar uma mesa de conciliação? Fica a sugestão.
Para os povos indígenas, a manobra do Congresso contra a decisão do STF e a recusa de membro do tribunal de suspender os efeitos da Lei 14.701 – em vez disso, criou uma “conciliação” – já redundaram em sofrimento e indefinição. Estamos vendo, na prática, uma vitória do bolsonarismo, do ruralismo, da extrema direita, dê-se o nome que se queira dar a esse setor mais reacionário da política no país. A insegurança jurídica é tão grande que o governo federal já a usa como argumento para evitar demarcações de terras indígenas no país.
Desde 2009, quando o STF embalou e criou a tese do “marco temporal”, era este o objetivo número um do ruralismo: que nunca mais se demarcasse uma terra indígena no Brasil. O ex-presidente Jair Bolsonaro disse que não iria demarcar nenhum centímetro e recebeu em peso o apoio do agronegócio. Bolsonaro foi colocado para fora do Executivo, mas eles conseguiram, agora sob as bênçãos do Congresso Nacional e do STF.
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