A presença de mulheres no jornalismo esportivo, sobretudo na narração, é recente. Quando se pensa na participação da mulher negra nesses espaços, é ainda mais excepcional. Nesse sentido, a jornalista Letícia Ferreira de Pinho, 25, está fazendo história.
A moradora de Carapicuíba, na Grande São Paulo, se formou em jornalismo na Unesp (Universidade Estadual de São Paulo) em 2022, e desde o ano passado trabalha com narração esportiva. Narrar, no entanto, nunca esteve nos planos da jovem, mas foi uma oportunidade para voltar ao jornalismo esportivo, área em que já atuava dentro da universidade, depois de se tornar mãe do Kauê, 5.
‘Eu tinha parado com isso porque no meio do caminho eu fui mãe, e precisava correr pra arrumar um emprego. Acabei caindo no marketing, que eu também estou até hoje, mas eu sempre gostei muito de esporte’
Letícia Pinho, narradora esportiva
Na infância, Letícia tinha vergonha de contar para os pais que jogava futebol na escola, e que por isso seus tênis gastavam depressa. Um dia, viu a equipe feminina do Paulista de Jundiaí, cidade onde cresceu, saindo uniformizada de um treino.
“Lembro que fiquei encantada, porque só você vendo e tendo esse espelho pra falar ‘eu posso fazer isso’”, disse. Depois, Letícia assumiu o gosto pelo futebol e trocou os tênis gastos por chuteiras. Desde então, acompanha o crescimento da presença feminina no esporte.
Trajetória na narração
No final de 2022, Letícia começou um curso de narração esportiva no Sesc Bauru, cidade onde cursou a faculdade, no interior de São Paulo. A palmeirense conta que ficou bastante animada quando soube que Anderson Cheni, locutor do Allianz Parque (estádio do Palmeiras) seria o professor. Ela era a única mulher da turma.
A formação e o contato com o narrador abriram portas para que a jornalista atuasse em outros jogos – de vôlei, basquete e futebol. Além disso, outra mulher preta ajudou a impulsionar a trajetória de Letícia: a Denise Rosa, Monitora de Esporte no Sesc Bauru.
“Isso é uma coisa que ela fala desde que a gente conheceu, que ela tem esse objetivo de colocar mais gente preta para fazer as coisas”, contou Letícia.
A partir daí, a jovem fez outros cursos de narração e deu oficinas de locução esportiva em diferentes cidades do interior paulista. Além disso, ela narrou partidas, principalmente de vôlei, de campeonatos amadores e profissionais.
“Me convidaram para fazer um jogo do campeonato paulista de vôlei, Sesi e Atibaia. Também foi super legal. Na época eu queria narrar o Darlan, que hoje está na seleção, mas ele estava jogando pré-olímpico. Foi uma experiência muito legal”, relembra.
Letícia também fez a narração de um dia inteiro de CBI (Campeonato Brasileiro Interclubes) de vôlei feminino sub-21. E, em uma partida do Realidade Jovem contra o Pinda Ferroviária, a locutora fez a primeira narração no Paulistão Feminino 2024. Para ela, este é o maior destaque da carreira.
Ocupando espaços
Nomes como Renata Silveira, Natália Lara e Isabelly Morais já são conhecidos entre a narração esportiva como as primeiras mulheres a terem destaque na função. Até mesmo Letícia Macedo, narradora da Cazé TV, que foi a mais jovem a narrar um jogo de Copa do Mundo Feminina, com apenas 19 anos.
Ainda que a presença de mulheres brancas cresça no jornalismo esportivo, o número de mulheres negras com o mesmo destaque e reconhecimento é bastante restrito.
Letícia Pinho é uma das primeiras narradoras esportivas negras que se tem registro. Além dela, existe Luisa Santana, que narra desde o começo de 2022. “Contando com ela, eu sei de três até agora, incluindo eu mesma”, disse. A outra é conhecida apenas por Jô, uma narradora de campeonatos amadores no interior paulista.
Há também Duda Gonçalves, mineira que iniciou sua carreira em 2018 como repórter e locutora esportiva na Rádio Inconfidência, em Belo Horizonte (MG). Em 2022 ela foi uma das vencedoras do “Narra Quem Sabe”, um reality da ESPN que buscava uma voz feminina para narrar as transmissões.
“Desde o próprio jornalismo esportivo, seja ele apresentadoras, repórteres, hoje a gente tem poucas referências, mas temos referências”, diz Leticia, indicando nomes como Jordana Araújo, comentarista do SporTV, e Day Natale, repórter da Cazé TV.
A narradora lembra que mulheres eram proibidas de jogar futebol no Brasil até 1983. “Faz pouquíssimo tempo”. A lei que proibia a presença feminina no esporte foi criada em 1941 durante a Era Vargas.
“A primeira vez que uma mulher narrou um jogo foi em 1971, se não me engano. A primeira vez que um homem narrou um jogo foi em 1931, então a gente tem 40 anos de abismo entre um e outro”, acrescentou a jornalista, se referindo a Zuleide Ranieri quando menciona a primeira mulher a narrar um jogo de futebol.
Na televisão brasileira, Luciana Mariano foi a primeira narradora de futebol. Também natural de Jundiaí, assim como Letícia, ela narrou a primeira partida em 1997. Renata Silveira, da Globo, foi a primeira mulher a narrar uma partida mundial de futebol.
‘De qualquer forma, a gente tá ali no começo. Eu sempre vou querer incentivar outras meninas, principalmente meninas negras, com certeza (…) querendo ou não, o pioneirismo tá acontecendo’
Letícia Pinho
Para a jornalista, olhar para um lugar e não ver gente igual a ela, a motiva a estar entre as primeiras naquele espaço. “Cabe a mim, tendo a oportunidade que eu tenho, de ser a referência para quem vier posteriormente”, afirma.
Letícia enfatiza, no entanto, que outras narradoras negras podem estar em atividade Brasil afora, muitas vezes narrando campeonatos informais – de várzea. Além disso, quase nunca podemos ver o rosto, e portanto a cor, de quem está narrando a partida.
“Eu só sei que a Jô é preta porque eu a conheci pessoalmente. Então pode ser que tenham outras que também estão nesse contexto mais informal, que não aparecem, que narram por diversão, por hobby, têm outros empregos, outras profissões. Espero que tenham”, destaca.
Não aparecer na tela, aliás, é uma das razões que Letícia aponta por nunca ter sofrido um episódio de racismo. No entanto, a narradora já recebeu comentários ofensivos e machistas durante as transmissões, predominantemente de homens utilizando perfis sem identificação.
“Às vezes as pessoas só têm o prazer de criticar porque não conseguem ser reconhecidas, conseguem se esconder de alguma forma”, afirma. Segundo ela, todas as vezes em que algo do tipo aconteceu, sempre foi on-line, e nunca pessoalmente.
A maternidade e o dia a dia
Além de narradora esportiva, Letícia também é redatora, criadora de conteúdo, mãe, noiva, filha, amiga e irmã.
“Parece que o tempo não existe porque você tem que arrumar a casa, tem que cuidar de criança, tem que trabalhar no trabalho principal, fazer comida, ir para academia. É complicado, é corrido, mas a gente vai fazendo do jeito que dá”, diz.
Os fins de semana são os dias mais agitados, pois é quando acontecem os jogos. Além disso, ela continua com as narrações do Sesc, também aos sábados e domingos. Durante a semana, trabalha de forma híbrida, o que facilita passar mais tempo com o filho Kauê.
A maternidade, aliás, foi o maior desafio que Letícia enfrentou durante a graduação. “Com certeza nem se compara às outras coisas. No primeiro momento eu achei que não ia dar pra continuar, mas minha mãe olhou no fundo do meu olho e falou ‘você não vai parar, você vai até o final’”.
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