Fundo ligado a ACM Neto planeja condomínio de luxo em ambiente sensível na Bahia

Por Anna Beatriz Anjos

Fundo ligado a ACM Neto planeja condomínio de luxo em ambiente sensível na Bahia

Uma lagoa de leito farto e águas num tom azul cintilante, emoldurada por imponentes falésias fincadas em uma praia de areias claras. Era essa a paisagem que se encontrava ao visitar a praia de Lagoa Azul nos anos 1990. Desde que foi descoberta pelo turismo no fim da década de 1980, o cartão-postal localizado entre os distritos de Arraial d’Ajuda e Trancoso, em Porto Seguro, no sul da Bahia, atraiu milhares de frequentadores por sua exuberância.

Mas, há cerca de 20 anos, o cenário vem se transformando. A vegetação de Mata Atlântica que ocupava o topo das falésias do entorno foi dando lugar a resorts de alto padrão. A erosão desses paredões, causada pelo desmatamento, e desvios no rio que vertia por entre as encostas foram diminuindo a superfície da lagoa. A coloração que lhe rendeu o nome desapareceu em boa parte.

Agora, o ponto turístico corre o risco de uma ameaça ainda maior por um loteamento residencial de luxo com cerca de mil unidades que deve ser construído sobre as falésias localizadas exatamente acima da lagoa que dá nome à praia. 

O Praia do Castelo Fundo de Investimento Imobiliário, responsável pelo empreendimento, tem entre seus cotistas um dos políticos mais populares e influentes da Bahia: o ex-prefeito de Salvador e ex-deputado federal Antônio Carlos Magalhães Neto, mais conhecido como ACM Neto. Atualmente, ele é secretário-geral do União Brasil, partido que integra o chamado “centrão” no Congresso Nacional. A Pública apurou que o publicitário baiano Sidônio Palmeira, responsável pelo marketing da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência da República em 2022, também é cotista do fundo.

Parte do terreno que abrigará o complexo – para o qual está prevista a construção de helipontos, elevadores panorâmicos e clubes de esportes e praia – está em uma área ambientalmente sensível onde se recomenda a criação de uma unidade de conservação, de acordo com um estudo contratado pela prefeitura de Porto Seguro. 

Por que isso importa?

  • A região da Lagoa Azul, um importante ponto turístico de Porto Seguro, tem sido degradada nos últimos anos devido à erosão causada pelo desmatamento do entorno. O problema se deve principalmente à construção de empreendimentos turísticos e imobiliários.
  • Agora o local está nos planos de um empreendimento de luxo que prevê a construção de cerca de mil unidades, o que pode aumentar a degradação. Um estudo contratado pela prefeitura detectou a necessidade de criar ali uma unidade de conservação.

A análise, entregue em julho de 2023, aponta que a transformação do local em uma área protegida contribuiria para preservar espécies de fauna restritas à Mata Atlântica existentes no local e recuperar as características naturais da lagoa.

Além de agravarem os impactos ambientais já sentidos na região, as obras trazem outras preocupações à comunidade local, que teme pela restrição do acesso às praias. É esse tipo de situação que, segundo especialistas, pode ser facilitado caso aprovada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022, que ficou conhecida recentemente como “PEC das praias”. 

A Agência Pública apurou que o fundo de investimento instalou, em março, correntes e tocos de madeira no caminho de terra que liga a estrada que vai de Arraial d’Ajuda a Trancoso à praia de Taípe, por onde se chega à Lagoa Azul.

Em protesto, funcionários das barracas de praia se juntaram para retirar as barreiras. Eles temem que o público frequentador seja impedido de acessar o local, o que ameaçaria seus empregos. “Se eles fizerem isso, acabou”, diz Gervásio Braga, um dos funcionários. 

Ele conta que levar as compras até a barraca na qual trabalha já é uma operação difícil: precisa deixar o carro em um estacionamento na estrada de terra e descer carregando os mantimentos com um carrinho de mão ou, por vezes, com as próprias mãos. Se a estrada for fechada, a tarefa ficará impossível. “Só tem aquela estrada [para chegar às praias], nós vamos pra lá como?”, questiona. “Como a gente vai sobreviver?”

“Condomínio Residencial Taípe” ocupará área equivalente a 319 campos de futebol

O Praia do Castelo Fundo de Investimento Imobiliário é detentor de um patrimônio de cerca de R$ 453 milhões, de acordo com dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). 

Informações sobre os cotistas de fundos de investimentos são sigilosas e, portanto, não estão disponíveis publicamente. Mas, em 2022, quando foi candidato ao governo da Bahia pelo União Brasil, o próprio ACM Neto declarou à Justiça Eleitoral possuir R$ 3,5 milhões em cotas no Praia do Castelo. Procurada pela Pública, sua assessoria de imprensa confirmou que ele segue como cotista, “mas não exerce nenhuma atividade executiva ou de gestão relacionada ao fundo”.

Já Sidônio Palmeira não quis responder aos questionamentos da reportagem.

ACM Neto segue ligado ao fundo Praia do Castelo

Conforme portaria publicada em dezembro de 2023 pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) da Bahia no Diário Oficial do estado, o condomínio já conta com licença prévia – primeira etapa do licenciamento ambiental. A autorização aprova a localização e concepção do empreendimento, atesta, em tese, sua viabilidade ambiental e determina as condicionantes a serem atendidas nas próximas fases da construção. 

O passo seguinte é a obtenção de uma licença de implantação, que autorizará a instalação do complexo residencial conforme o projeto aprovado e fixará um cronograma para cumprimento das condicionantes estabelecidas.

O terreno de 319 hectares – equivalente a cerca de 319 campos de futebol – onde serão feitas as obras foi adquirido pelo fundo em 2022, por R$ 140 milhões, da Tucuruí Empreendimentos Imobiliários S.A., empresa com sede em Salvador, que desistiu dos planos de construir ali um resort.

Por enquanto, não foi definido um nome comercial para o empreendimento. Ele foi chamado de “Condomínio Residencial Taípe” em portaria publicada pelo Inema, de janeiro, que autorizou a mudança de projeto no local. Aos cotistas, segundo documentos disponibilizados pela CVM, o Praia do Castelo Fundo de Investimento Imobiliário já se referiu a ele como “Projeto Trancoso”. As vendas não começaram.

O condomínio de alto padrão será implementado em duas fases, de acordo com informações do Inema. Na primeira, serão construídas 359 unidades privativas com área de aproximadamente 2 mil metros quadrados, além de três vilas com 248 unidades residenciais; na segunda, devem ser implementadas 281 unidades privativas com aproximadamente mil metros quadrados e duas vilas com 183 unidades.

A infraestrutura deve contar ainda com áreas de lazer com piscinas, clubes de esportes e de praia, helipontos, elevadores panorâmicos e um túnel de ligação entre as fases, conforme revelam plantas provisórias, às quais a Pública teve acesso, que foram apresentadas por representantes do empreendimento a trabalhadores das cabanas de praia no segundo semestre do ano passado.

Região atraiu 2 milhões de turistas em 2023

Sem unidade de conservação na Lagoa Azul, “daqui a pouco estará tudo tomado”

As praias de Taípe e Lagoa Azul são das últimas áreas do litoral de Porto Seguro sem proteção ambiental ainda não tomadas por luxuosos hotéis, resorts, condomínios ou mesmo pousadas, que, apenas no ano passado, atraíram cerca de 2 milhões de turistas. O vizinho direto da praia de Taípe, que dá acesso à Lagoa Azul, é, por exemplo, a unidade Trancoso da famosa rede de hotelaria francesa Club Med.

Lagoa Azul pode guardar vestígios de populações indígenas

A preocupação com o solo da Lagoa Azul vai além do assoreamento de seu leito ou da erosão das falésias. O terreno pode abrigar vestígios deixados por povos indígenas que habitavam a área antes da chegada dos colonizadores portugueses.

Em 2010, foi concluído um levantamento arqueológico da área, contratado pela Tucuruí Empreendimentos Imobiliários S.A., antiga dona do terreno adquirido pelo fundo Praia do Castelo. Na época, a empresa planejava a construção de um outro empreendimento, que acabou não se concretizando.

A sondagem tinha o intuito de avaliar a presença de vestígios arqueológicos de interesse e fazia parte dos estudos de impacto ambiental para a instalação do empreendimento. O licenciamento ambiental precisa considerar os impactos em bens culturais acautelados que possam estar inseridos na propriedade, de acordo com uma portaria interministerial de 2015. 

Sabia-se que no terreno vizinho haviam sido encontrados sítios dos povos indígenas Tupi-Guarani e Aratu, que viviam na borda da falésia em frente ao mar. A ocupação da “Costa do Descobrimento” pelas populações originárias foi mais intensa entre os séculos 13 e 16, mas o povo Aratu, especificamente, teve uma presença mais antiga – entre os séculos 10 e 14. 

O relatório arqueológico ressalta que obras e construções afetam diretamente a preservação dos sítios arqueológicos da região, dos quais cerca de 70 já foram catalogados.

As escavações constataram a existência de dois sítios líticos – locais usados para a fabricação de objetos em pedra – e a possibilidade de um sítio arqueológico nas imediações, a partir do achado de fragmentos de cerâmica e carvão em porções de terra preta. 

Esse tipo de solo de coloração escura é caracterizado pela presença de resquícios cerâmicos e possui alta fertilidade, originada por processos desencadeados pelas populações pré-colombianas.

O pesquisador responsável pela análise recomenda um “levantamento mais detalhado nas áreas de ocorrência de terra preta para definitivamente confirmar a ocorrência de artefatos nestes locais e assim proceder com o salvamento arqueológico”, com o objetivo de preservar o patrimônio cultural e histórico.

Em resposta ao questionamento da Pública sobre as medidas em andamento para resguardar o potencial arqueológico da área, Ricardo Carneiro, gestor do Praia do Castelo, disse que “estudos arqueológicos já foram contratados e as pesquisas em campo estão em andamento através de equipes especializadas”.