Samarone Lima havia me pedido para ler a primeira versão de quando seu livro reportagem se resumia a dezenas de páginas datilografadas e grampeadas, resultado de suas primeiras pesquisas sobre os crimes da ditadura militar, que, àquela altura, havia acabado há menos de dez anos. Acredito que fui um dos primeiros ler a história sobre os últimos anos de vida do estudante mineiro José Carlos da Mata Machado, assassinado pelos militares aos 27 anos, em 1973.

Dei a opinião sobre o que havia lido a bordo de um ônibus que fazia a linha Jardim Vila Mariana-Praça João Mendes, a caminho de minha casa no bairro paulistano do Cambuci. Caprichei na gentileza e disse o que havia achado da leitura: “O início está uma merda, dá sono. Se o livro é um perfil de um cara que todo mundo sabe que já morreu, porque não começa logo pela cena da morte dele?” Sempre me senti à vontade de ar pitaco no trabalho dos outros.

Samarone acatou minha sugestão e trouxe os momentos dramáticos em que José Carlos, coberto de sangue que saía de suas muitas feridas e escorria pelo chão de uma cela, diz seu nome a outro preso e pede que ele diga que, mesmo torturado, não traiu ninguém. Na versão oficial, ele tinha morrido num tiroteio com outros militantes numa esquina da avenida Caxangá, zona oeste do Recife.

Trinta anos depois, acompanhei a estreia nacional do filme no Cine Belas Artes, em Belo Horizonte, a cidade onde o protagonista passou a infância e a adolescência. Na poltrona à minha frente, um dos personagens do filme, Eduardo Soares, filho de José Carlos, hoje pró-reitor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), instituição onde seu pai estudou e que, ainda neste mês de setembro, irá conceder diploma póstumo de Direito ao seu pai e a outros dois estudantes assassinados pela ditadura.

“O filme dá forma e imagem às minhas memórias, que foram construídas pelas lembranças que tenho, pelas histórias que me contaram, pelo que li ao longo da minha vida, inclusive o livro de Samarone”, me contou Eduardo, professor de Filosofia, na saída do cinema. Eduardo também revelou que a violência da qual foi vítima quando ele e a mãe estavam nas mãos dos militares foi bem pior na vida real do que na tela. Mais do que isso não conto.

O diretor Rafael Conde, também professor da UFMG, na Escola de Belas Artes, também falou de memória. “A gente achava que eram só os filmes sobre a ditadura que iam e vinham no Brasil, mas agora que o fascismo também voltou, é fundamental falar daquela época e daquelas pessoas que não podiam nem dizer seus próprios nomes”, afirmou.

Conde explicou porque optou por fazer um filme de ficção: “reconheço que o cinema documental no Brasil sempre foi muito ativo e contundente, mas o cinema de ficção tem a capacidade de trazer o tema para os dias atuais. Além disso, a memória também é uma grande ficção”. Na tela, Zé é interpretado pelo ator Caio Horowicz, em uma atuação bastante elogiada nos festivais onde o longa-metragem foi exibido. O elenco conta ainda com Eduarda Fernandes, Samantha Jones, Yara de Novaes e Gustavo Werneck.

Sessão especial no Cinema da Fundação

A sessão das 19h desta quarta-feira, 4 de setembro, no Cinema da Fundação da avenida 17 de Agosto será especial, com debate entre o autor do livro, Samarone Lima, o jurista Manoel Moraes, que presidiu a Comissão da Verdade em Pernambuco, e Amparo Araujo, do Grupo Tortura Nunca Mais.

Nova edição com pré-venda

Não adianta procurar o livro que deu origem ao filme nas livrarias e plataformas online. A obra está fora de catálogo há pelo menos 10 anos. No entanto, Samarone lançou uma campanha de pré-venda de uma segunda edição revista e atualizada com entrega prevista para o início de 2025. Os livros da nova edição podem ser adquiridos aqui neste link.

De acordo com Samarone, a fase de pesquisa já foi concluída. Na verdade, mesmo depois de lançar o livro em 1998, ele nunca parou de pesquisar as circunstâncias de vida e morte do mineiro. “Uma característica do livro original é que as fontes na época, de 1993 a 1998, eram basicamente fontes orais, entrevistas com pessoas que tinham presenciado as cenas ou tinham conhecido o Zé, a família dele, os amigos, os militantes da AP [sigla da organização de esquerda Ação Popular], ou notícias de jornal, não tinha ocorrido o processo das comissões da verdade, que levantaram farta documentação nos arquivos da repressão”, explica o autor, que tem 13 livros publicados.

Curiosamente, uma das principais fontes para a primeira edição foi Gilberto Prata Soares, cunhado de Zé e traidor infiltrado que o entregou para os agentes da repressão.

A partir de 2020, em plena pandemia, Samarone imergiu na pesquisa dos documentos oficiais aos quais passou a ter acesso e ampliou o leque de entrevistas. “Praticamente todos os capítulos vão ganhar agora informações novas e muitas articulações diferentes de pessoas que não tinham aparecido, de pessoas que não tinham sido devidamente contempladas no papel que representaram naquele contexto”, afirma.

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