A sede pelo saber foi algo que moveu a vida de Maria Enalva de Souza Silva (1948 – 2024), fotógrafa e ativista do Grajaú, distrito do extremo-sul de São Paulo. Nascida na Bahia, toda vez que via um avião voar no céu quando era adolescente, se questionava: “Aonde ele vai? Como funciona?”.

Quando chegou em São Paulo, na década de 1970, trabalhou como metalúrgica e a curiosidade pelo aprender continuava pulsando. Ela gostava de ir ao cinema e se encantava com as imagens que eram projetadas na tela.

“Ela queria se movimentar e estar em movimento. Estudou pintura, história da arte, cinema e tantos outros cursos. Também era prestativa e generosa com os seus”, conta Fernanda Nunes, 35, professora de artes, atriz e artista do coletivo Enchendo Laje & Soltando Pipa.

Nalva recebeu prêmios nacionais e internacionais pelo seu trabalho, além de trabalhar para grandes veículos de mídia @Carol Leone/@camaleoaphoto

Em 1977, se casou e seis anos mais tarde, se divorciou e passou a criar os filhos sozinha. Após esse abandono, foi na câmera que encontrou a motivação para continuar vivendo e de onde tirou o sustento dos quatro filhos – três filhos biológicos e uma filha adotiva.

Em 1980, comprou um apartamento no BNH (Conjunto Habitacional Brigadeiro Faria Lima), em uma época em que o bairro não tinha tantas escolas, postos médicos, mercados, transporte público, entre outros direitos básicos.

Para mudar essa realidade, Nalva se juntou ao Clube de Mães, movimento de mulheres do Grajaú que reivindicava por esses direitos e, em 1988, iniciou o curso de fotografia por meio de uma bolsa de estudos no Senac Lapa Scipião, o que proporcionou a entrada na área profissional.

Nalva utilizou a câmera como ferramenta para fazer registros das principais movimentações políticas do território em uma época em que muitas pessoas das periferias nem pensavam em adquirir um equipamento para registrar as próprias memórias.

Nalva ao lado da equipe do Enchendo Laje & Soltando Pipas, grupo de teatro com mais de 19 anos de atuação @Carol Leone/@camaleoaphoto

Ela também foi pioneira ao fotografar grandes figuras públicas, como o presidente Luís Inácio Lula da Silva e o cantor jamaicano Jimmy Cliff, do qual se tornou amiga pessoal posteriormente.

Ela trabalhou na TV Record no programa ‘Sábado Show’, de 1988 a 1995, participou de concursos como o Cine Foto Clube Bandeirantes, onde ganhou o prêmio de primeiro lugar. Em todos usava a mesma câmera, a primeira que comprou.

“É importante pensar qual a visibilidade que Nalva teve não só no Grajaú, mas fora dele, já que recebeu prêmios internacionais”, conta a fotógrafa Carol Leone, 27. “Ela começou registrando aniversários, se encontrou no jornalismo e hoje possui um arquivo extenso.”

‘O quanto a mulher fotógrafa não tem seus devidos créditos. Dona Nalva tinha essa visão de que a fotografia não é sobre o melhor equipamento, mas o olhar’

Carol Leone, fotógrafa

Posteriormente, se formou na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) no curso de História da Arte, Humanidades e Cidadania, e foi na Editora Abril onde se aposentou.

Coleção de câmeras que a fotógrafa teve ao longo da vida @Carol Leone/@camaleoaphoto

Os trabalhos dela apareceram em diversos jornais, como a Folha de São Paulo e o Diário Popular. Também foram mostradas em várias exposições, como “100 anos da Consciência Negra 1988”, no Centro Cultural São Paulo, “Grajaú: Ontem e Hoje” no MIS (Museu da Imagem do Som) em 1991, “Mulheres Construindo Cidadania”, na Casa da Mulher do Grajaú em 2009, “Índios e Metrópole” que ficou em cartaz na Biblioteca Mário de Andrade e tantos outros.

Todas essas fotos, hoje são memórias raras das quais Nalva tinha muito orgulho e cuidado para preservar. “Ela dizia que tinha medo de quando ela não estivesse mais aqui, as coisas dela fossem descartadas. Tinha muita angústia de toda a história dela não ter reconhecimento ou valor”, pontua Samara Monteiro, 33, atriz de teatro e que também atua com ações de saúde mental.

Homenageada em vida

A trajetória dela se tornou inspiração para uma das peças do “Memórias de um Grajaú Matriarca”, produzido pelo Enchendo Lajes e Soltando Pipas, em conjunto com quatro coletivos de teatro do Grajaú: Núcleo Pele, Cia Os Desconhecidos, Grupo 011 e Madeirite Rosa.

As peças retrataram as histórias de mulheres pioneiras que lutaram pelos direitos básicos da região. Além de Nalva, foram homenageadas a filósofa Maria Vilani, a arquiteta Ivanilda Mendes, a ativista Adélia Prates e a ativista Cidona.

Grupo de teatro Enchendo Laje & Soltando Pipas que a artista gostava de atuar do Grajaú @Carol Leone/@camaleoaphoto

A iniciativa foi promovida através do fomento do Programa Vai, da Secretaria de Cultura de São Paulo e inspirada nas reportagens produzidas por Lucimeire Juventino, disponíveis no Periferia em Movimento.

A homenagem a Nalva ocorreu no dia 30 de junho de 2024. Apesar de ter sido um domingo de muito frio, ela estava com um vestido amarelo, turbante, colares de búzios, pulseiras e brincos. Toda a roupa foi preparada por uma de suas netas, que também registrou o momento com as fotografias.

Nalva trouxe um caderno de autógrafos, no estilo em que se assina no museu, para guardar consigo as pessoas presentes. Abraçou a todos e se emocionou muito ao relembrar toda a trajetória durante a peça. Nalva faleceu dois meses depois, no dia 30 de agosto de 2024, em decorrência de uma cirurgia no pé.

Trecho da dramaturgia do espetáculo “Mulher de Retratos”, em homenagem a Nalva Maria

“Também gosto de criar

Crio história através das lentes , dos meus olhos

Criei tantas e retratei tantas que essas ficam pra eternidade!

Essas estão aí, em cores vivas para quem quiser ver!

Já disse que a saudade é coisa que o corpo todo sente?

Já contei das minhas coisas lá depois da Balsa! Pois é

É coisa!!!!

E quanta coisa!!!

Se meus pés aguentarem mais um pouco, continuo!

Eu quero e gosto de estar em movimentos…”

Agência Mural

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