A violência de gênero contra meninas e adolescentes negras é maior nos municípios do semiárido brasileiro que nas cidades fora dessas condições. A conclusão é de um relatório inédito da Iyaleta, associação de pesquisa independente registrada em Salvador, na Bahia, ao qual a Agência Pública teve acesso com exclusividade.

O trabalho, que usou dados de violências sexuais, como estupro, abuso sexual e exploração sexual, registrados entre 2019 a 2022 pelo Ministério da Saúde, buscou analisar o impacto dos eventos climáticos extremos nas agressões. Esses números foram cruzados com taxa de analfabetismo, abastecimento de água no domicílio, proporção de crianças em situação de baixa renda e dados de raça/cor nos 1.626 municípios do semiárido brasileiro.

Nas cidades do semiárido com extrema pobreza, meninas entre 10 a 14 anos são metade (50%) das vítimas por violência sexual. Em comparação, em municípios que não estão nessas condições, a taxa cai para 44%. Quando se olha o critério cor, a disparidade fica ainda maior. Entre as notificações de violência sexual entre meninas de 10 a 19 anos, 80,27% são negras nos municípios do semiárido em extrema pobreza, contra 50,14% nas cidades fora do semiárido.

“Sabe-se que pobreza é genderizada, mas também é racializada, considerando que são as mulheres negras e indígenas as que mais vivem em pobreza extrema, com isso gerando mais exposição a violência sexual para esses grupos ainda quando crianças”, aponta o relatório. 

No período de quatro anos, o levantamento encontrou 2.981 casos de violências contra meninas e adolescentes nos municípios do semiárido em contexto de pobreza. Isso equivale a cerca de dois casos por dia.

O estudo sugere que existe uma relação entre os efeitos das mudanças climáticas e as violências baseadas em gênero. “A falta de uma infraestrutura de abastecimento de água pode aumentar a vulnerabilidade a violência contra meninas e mulheres durante a caminhada para buscar água, assim como outros recursos florestais como lenha”, descreve o trabalho.

A pesquisa relaciona, ainda, a gravidez na adolescência e o casamento infantil como efeitos indiretos relacionados aos eventos climáticos extremos: “Adolescentes e crianças sofrem frequentemente de maneira desproporcional com as estratégias adversas de resposta adotadas pelas famílias, pois são, por exemplo, retiradas da escola ou se casam muito cedo”.

“É preciso que a agenda climática seja centralizada nas questões de gênero, reconhecendo as desigualdades prévias em que as pessoas já vivem, sobretudo nesse contexto de seca prolongada, para que politicas que estejam no entorno da adaptação climática, também tragam no seu principio o enfrentamento à violência sexual”, diz Emanuelle Freitas Góes, coordenadora da pesquisa. 

“Isso engloba desde estratégias de informação, educação sexual, acesso a serviços de saúde, mas também ao promover políticas públicas como acesso a água de qualidade: isso também reduz as violências sexuais, que são exacerbadas pela ausência de saneamento básico”, complementa.

O trabalho também descreve o fenômeno da “feminização da pobreza”, que é o aumento da proporção de mulheres entre os pobres na chefia dos lares, com a responsabilidade financeira e de cuidado das pessoas, em particular as crianças e idosos, que ficam sob a responsabilidade delas. 

O semiárido brasileiro possui atualmente 1.477 municípios. A classificação de quais entram ou saem da lista depende de um cálculo que leva em consideração índice de aridez, precipitação e déficit hídrico. Quem decide é o Conselho Deliberativo da Sudene, da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste.

Em janeiro deste ano, devido aos efeitos do El Niño, o Conselho decidiu, em caráter excepcional, a permanência de 50 municípios que estariam passíveis de saírem da categoria de semiárido.

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