Hoje pela manhã, indígenas Guarani-Kaiowá mandavam mensagens, desesperados, em grupos de WhatsApp. Uma das mensagens dizia: “Socorro, eles vão nos matar. Socorro!”. Minutos depois, uma outra mensagem em áudio avisava sobre o assassinato do jovem Neri Kaiowá, de 22 anos. “Infelizmente, uma vida perdida na [Terra Indígena] Nhanderu Marangatu, na retomada [da fazenda] barra. A comunidade pediu socorro, ajuda, mas ninguém chegou para ajudar. Ao menos, para ver o que realmente está acontecendo”, dizia uma indígena em prantos. 

O cerco aos Guarani-Kaiowá começou na madrugada. Um vídeo que circulava nos grupos da cidade sul-matogrossense Antônio João – a 281 km de Campo Grande, capital do estado –, mostrava veículos do Batalhão de Choque da Polícia Militar (PM) que se organizava para ir em direção aos indígenas, que retomaram a sede da Fazenda Barra que sobrepõe parte da área da TI Marangatu. Trata-se de um local de disputa entre fazendeiros e indígenas.

Vídeo mostra veículos do Batalhão de Choque da PM em direção aos indígenas Guarani-Kaiowá – Crédito: Reprodução

Ao atingir Neri, de acordo com o relato dos indígenas ouvidos pela Agência Pública, a PM teria alterado o local do assassinato arrastando o jovem para uma área de mata, enquanto teria impedido a comunidade de ter acesso ao corpo. Situação que, segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), é corriqueira. “A tática é a mesma: um indígena é morto a tiros e policiais militares alteram a cena do crime para dificultar ou inviabilizar a perícia”, disse a organização em nota. 

A equipe jurídica que assessora a Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, solicitou a presença da Polícia Federal na retomada. Contudo, o corpo de Neri foi levado ao Instituto Médico Legal (IML) de Ponta Porã, antes que os policiais federais chegassem ao local. 

“Eles mataram o Nery, a PM que matou ele. Depois chamou a Polícia Civil para fazer a perícia. Não chamaram os familiares para pegar documento e entregaram o corpo no IML de Ponta Porã (MS), como se fosse desconhecido. Isso é um descaso do Estado, como que eles fazem isso? Por que que não esperou a Polícia Federal? Quando a Federal chegou, eles já tinham levado o corpo”, disse uma indígena, que pediu para não ser identificada por questão de segurança.

Procurada, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) disse que 100 policiais militares foram ao local a fim de cumprir uma determinação judicial da Justiça Federal, para manter a ordem e segurança na propriedade rural Fazenda Barra, assim como permitir o ir e vir das pessoas entre a rodovia e a sede da fazenda.

A decisão judicial citada pela Sejusp foi dada pela Justiça Federal de Ponta Porã após uma ação da advogada Luana Ruiz, filha dos proprietários da Fazenda Barra, Roseli Maria Ruiz e Pio Queiroz Silva. Ela também é assessora especial da Casa Civil do governo do estado e tem histórico de militância contra a demarcação de terras indígenas. Luana foi candidata à Câmara Federal nas eleições de 2022 pelo Partido Liberal (PL) e já atuou como secretária adjunta no Ministério da Agricultura durante o governo de Jair Bolsonaro.

Procurada, Luana Ruiz não retornou até a publicação. Segundo o jornal O Globo, Roseli Ruiz foi indicada como “especialista” para participar de uma audiência de conciliação no Supremo Tribunal Federal (STF), no próximo dia 23, sobre a constitucionalidade do marco temporal na demarcação de terras. Seu nome, aliás, foi sugerido pelo PL e pelo Republicanos, autores de uma das ações que resultaram na mesa instituída por Gilmar Mendes.

O coordenador do Cimi – Regional MS, Matias Benno Rempel, disse à reportagem que o cenário demonstra o quanto o estado do Mato Grosso Sul tem um aparato, em várias instâncias, dominado pelo agronegócio. 

“Quando a Justiça Federal autoriza a polícia estadual, cujo chefe é o governador do estado, Eduardo Riedel, a servir como segurança privada da fazenda da assessora da Casa Civil, que foi quem ingressou com a ação. E quando essa personagem é Luana Ruiz, conhecida pelo seu ativismo contra a vida dos povos indígenas, isso tudo ajuda a explicar como o Mato Grosso do Sul é um agroestado, onde forças de segurança, juízes de primeira instância e governador funcionam como uma mesma estrutura, para a manutenção do esbulho”, afirma Rempel.

Entre mortos e feridos

Anderson Santos, assessor jurídico da Aty Guassu, explica que a Fazenda Barra é a última parte da Terra Indígena Nhanderu Marangatu que ainda não foi recuperada pela comunidade indígena, apesar de sua homologação em 2005. A demarcação foi suspensa por uma decisão judicial do STF, inicialmente pelo ministro Nelson Jobim, e segue paralisada sob o ministro Gilmar Mendes. Recentemente, uma tentativa de retomar a área deixou três indígenas feridos, incluindo um atingido por uma bala letal no joelho.

A última tentativa de retomar o território ocorreu em 2016. Na ocasião, fazendeiros locais, apoiados por políticos, realizaram um ataque violento que resultou na morte de Simião Vilhalva, que foi baleado. Outros dois assassinatos já ocorreram na luta pelo território, o de Dorvalino Rocha, em 24 de dezembro de 2005, e o de Marçal Tupã, em novembro de 1983.

*Correção às 14:23 de 19/09/2024: Anteriormente, foi informado que o município de Ponta Porã, para onde foi levado o corpo do jovem Neri Kaiowá, estava localizado no estado do Paraná (PR). No entanto, Ponta Porã pertence ao estado do Mato Grosso do Sul (MS).

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