Com aterros invadindo curso do rio Jaboatão, Muribeca teme novos alagamentos
Moradora do Conjunto Brasil Novo, no bairro da Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, Jéssica Ferreira convive com os alagamentos há anos e entrou em alerta com os aterros que estão sendo realizados no entorno do bairro sem conhecimento prévio da população. Ela teme que as obras provoquem novas enchentes. “Estamos muito preocupados com esse aterro porque,antes, já dava cheia muito grande. Em 2022 mesmo deu uma cheia aqui que a gente perdeu tudo, morreu gente, morreu muito bicho, e ainda nem tinha esse aterro. Então, a gente imagina que agora vai ficar ainda pior”, prevê a moradora.
“E a gente não tem como sair daqui porque não temos condições de pagar um aluguel ou comprar uma casa em outro lugar. Enquanto isso, o aterro está crescendo, as obras não param e a gente não sabe nem do que se trata a obra”, concluiu Jéssica, que, durante as chuvas de 2022, precisou deixar sua casa completamente alagada, com de 1,60 m de água dentro do imóvel.
No evento climático das chuvas de maio e junho de 2022, que resultaram em 133 mortos em Pernambuco, o município de Jaboatão de Guararapes registrou 64 destes óbitos. Segundo o Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), Jaboatão possui 82.785 imóveis sob incidência de mancha de inundação e outros 24.442 imóveis com alto e médio risco de deslizamentos.
O grande volume de chuvas, decorrente das mudanças climáticas, não é suficiente para explicar a situação de vulnerabilidade ao qual estão expostas grande parte da população jaboatonense, pois mesmo sem a ocorrência de chuvas intensas a população sobre com alagamentos constantes. De acordo com os moradores, um fator determinante para uma maior incidência dos alagamentos são os aterros de áreas próximas aos canais e ao Rio Jaboatão, realizados por empresas privadas, a grande maioria delas do ramo de logística, que se instalaram no município.
Nas imagens a seguir, realizadas no bairro da Muribeca, é possível observar um aterro de grandes extensões feito no curso do Rio Jaboatão, em uma área próxima a comunidade da Sapolândia e do Conjunto Brasil Novo.
Grande parte das áreas de Jaboatão dos Guararapes são de morros ou de planícies suscetíveis ao risco de alagamento. As áreas de planície estão destinada a reter parte do volume das águas da bacia hidrográfica do rio Jaboatão, que, em seu curso natural, nasce no município de Vitória de Santo Antão, passa por Moreno e cruza todo território de Jaboatão antes de desaguar na divisa com o Cabo de Santo Agostinho.
A área conhecida como Baixo Jaboatão, onde estão inseridos os bairros de Muribeca e Marcos Freire, são áreas que estão próximas ao curso do rio e são atravessadas por canais como Mariana e Três Carneiros, que auxiliam o escoamento da água do rio em períodos de chuva quando o nível da água tende a aumentar.
Apesar de ser naturalmente uma área passível de alagamento devido a baixa declividade de seu relevo e seu solo com baixa capacidade de drenagem, nos últimos anos, as comunidades que habitam o entorno enfrentam uma maior incidência de alagamentos e enchentes, e o fenômeno tem se estendido para novas áreas da região. De acordo com um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE), em 2022, mais de 70% de Jaboatão dos Guararapes apresenta suscetibilidade entre média e muito alta de risco à inundação e alagamento.
“Os eventos climáticos acontecem normalmente todos os anos, isso a gente sempre espera, que haja um pico de chuva e com isso algumas áreas sejam alagadas. Mas essas áreas alagadas aumentaram muito de proporção, de forma gigantesca nos últimos anos. Muitas casas que antes nem alagavam agora são invadidas pelas águas”, explicou Luiz Cláudio Gomes, morador do Loteamento Brasil Novo, no bairro da Muribeca.
“Alagamentos que antes aconteciam de dez em dez anos, de forma bem rara, agora acontecem anualmente. Em 2022 foi aquele acontecimento atípico, foi realmente um volume de chuvas muito elevado, eu tive água dentro da minha casa, na altura do meu rosto. Perdi tudo praticamente, só consegui salvar o computador e a TV. Em 2023, mesmo sem um volume forte de chuvas, eu tive que tirar a minha filha recém-nascida de casa porque a água começou a inundar tudo. Agora, em 2024, exatamente um ano depois, entrou água de novo”, concluiu Gomes.
Nos vídeos abaixo, divulgados pela organização Somos Todos Muribeca, é possível observar como o entorno do rio Jaboatão e as moradias locais, das comunidades do Loteamento Brasil Novo e Sapolândia, ficam completamente alagadas em períodos chuvosos.
Análise técnica aponta aumento de riscos
De acordo com a nota técnica Mudanças Climáticas e risco de deslizamento e inundação em Jaboatão dos Guararapes: um chamado por ações de redução de riscos e adaptação climática, elaborada pelo Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH) em parceria com a Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade (CAUS) e o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), a topografia, a hidrografia e os tipos de solo de Jaboatão dos Guararapes já colocam a região suscetível a eventos climáticos de alto e médio risco.
Contudo, a falta de planejamento urbano e a inexistência de um Plano de Adaptação Climática, associadas ao baixo investimento da gestão municipal em projetos de mitigação e redução de riscos para áreas vulneráveis, resultam em um agravamento da situação.
“O assoreamento dos principais canais de drenagem intensifica a suscetibilidade ao fenômeno da inundação no município. O diagnóstico destaca o fato do trecho final da bacia do rio Jaboatão estar inserida em uma planície aluvial com uma vasta quantidade de sedimentos, fatores que culminam na baixa velocidade de escoamento dos canais e consequente transbordamento nas áreas de várzea do município, inundando todas as Regionais jaboatonenses”, destaca a nota técnica da CPDH.
A partir das imagens aéreas feitas pelo estudo técnico da CPDH é possível notar um aumento no número de empreendimentos logísticos e dos aterros instalados na região da Muribeca, entre os anos de 2009 e 2022.
No canto superior esquerdo da fotografia abaixo é possível ver uma faixa de areia, onde está localizado o aterro que está sendo feito ao lado das comunidades Conjunto Brasil Novo e Sapolândia. A pessoa que aparece na imagem mede 1,75 m e está a aproximadamente 700 metros de distância da obra. Através do registro é possível ter uma dimensão da altura do aterro e o impacto que ele tem na topografia e na paisagem local.
“Essas áreas que estão sendo aterradas são áreas de bolsões de água, que acumulam as águas dos rios e canais. Com essas áreas sendo aterradas, as águas que se acumulavam lá passam a vir para dentro das comunidade, se aproximam das nossas casas, e nenhuma ação é tomada para mitigar esses efeitos. É isso que eu acho um absurdo, primeiro se constrói para depois se pensar em uma solução para os problemas”, disse Luiz Cláudio Gomes.
Estudos de impacto ambiental não foram apresentados
Desde a demolição do Conjunto Habitacional da Muribeca, a comunidade acompanha as especulações sobre a possível desapropriação total da área. Em 2020, a Justiça Federal determinou que a reconstrução do conjunto habitacional na área não seria possível porque o terreno possui problemas de estrutura. Agora, os moradores locais convivem com uma grande área abandonada e sem uso, localizada bem no meio do bairro, e com os aterros de empresas no entorno do território.
“É preciso que a gestão municipal se comprometa a solucionar a situação dos moradores de Muribeca. Investir em um plano de adaptação climática é um passo importante. Além disso, em caso de desocupação da área, é preciso garantir que os moradores tenham acesso a moradias dignas e não que sejam despejados de forma irresponsável”, defendeu Manoela Jordão, urbanista do CPDH.
Ainda de acordo com a urbanista, as obras de aterro nos cursos dos canais Mariana e Três Carneiros e no rio Jaboatão estão sendo realizadas sem que as empresas apresentem documentos e estudos prévios de impacto ambiental, o EIA/RIMA – Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental.
A reportagem procurou a Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH) para saber se as empresas apresentaram os estudos de impacto ambiental e se o órgão estaria realizando fiscalizações nos terrenos que margeiam o rio Jaboatão no município de Jaboatão dos Guararapes. Em resposta, a CPRH afirmou que “o município de Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana, possui autonomia para emitir licenças ambientais […] Dessa forma, os dados solicitados são de competência do município”.
Direcionamos os questionamentos para a prefeitura de Jaboatão dos Guararapes, que deu resposta à reportagem afirmando que as construções licenciadas pela gestão municipal atendem às normas e diretrizes estabelecidas pela Lei Complementar 17/2013, que alterou o Plano Diretor do município. A gestão afirmou ainda que está elaborando um novo Plano Diretor, “participativo, com várias escutas à população, moderno e inovador, com uma visão de planejamento sustentável do município e planejamento para os próximos 20 anos”.
As construções licenciadas pela Prefeitura do Jaboatão dos Guararapes atendem às normas e diretrizes estabelecidas pela Lei Complementar 17/2013, de 03 de dezembro de 2013, que alterou o Plano Diretor. A gestão atual vem construindo um novo Plano Diretor. Um plano participativo, com várias escutas à população, moderno e inovador, com uma visão de planejamento sustentável do município e planejamento para os próximos 20 anos.
Em paralelo, estão sendo adotadas medidas efetivas (obras de manutenção dos cursos d’água e adequação da estrutura de macrodrenagem dos principais canais) para enfrentar os problemas de alagamento. Os resultados foram visíveis nas últimas chuvas (que acumularam 270 milímetros), quando muitas áreas antes alagáveis não sofreram como antes.
A Prefeitura também vem buscando recursos para obras de grande porte, como os projetos de requalificação de canais de áreas de alagamentos, que tiveram R$ 73 milhões aprovado pelo PAC, e a Barragem do Engenho Pereira (cuja retomada já tem compromisso do governo estadual), que fará contenção das águas que caem sobre o Rio Jaboatão, que tem 48 afluentes no município.
Além disso, a Prefeitura do Jaboatão reestruturou a Defesa Civil, adquiriu seis estações meteorológicas, para que o Sistema de Alerta e Alarme do Plano Integrado de Emergência (PIE) do município tenha ainda mais celeridade, a partir de leituras pluviométricas. Somado a isso, contratou empresa especializada em serviço de monitoramento meteorológico, análise e previsão de risco geológico e inundações, bem como criou uma Sala Integrada de Emergência e realizou vários treinamentos de capacitação para a equipe, comunidades e parceiros. Também vem trabalhando junto a UFPE e União para a atualização do Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR).
“Em paralelo, estão sendo adotadas medidas efetivas (obras de manutenção dos cursos d’água e adequação da estrutura de macrodrenagem dos principais canais) para enfrentar os problemas de alagamento. Os resultados foram visíveis nas últimas chuvas (que acumularam 270 milímetros), quando muitas áreas antes alagáveis não sofreram como antes”, afirma a nota da prefeitura enviada à reportagem.
No entanto, a gestão municipal não respondeu ao questionamento sobre quais seriam os nomes das empresas que estão realizando obras de aterro nas áreas do rio Jaboatão. Além disso, não enviaram, como solicitado, os estudos de impacto ambiental elaborados pelas empresas, nem confirmou se esses planos existem.
A Muribeca passou a fazer parte de uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) reconhecida pela Defensoria Pública de Pernambuco em 2016. Além disso, a CPRH reconhece que as margens do rio Jaboatão são consideradas Áreas de Preservação Permanente (APP).
“É isso que nós estamos tentando entender, como um território que integra uma ZEIS e uma APP está sendo modificado pelas empresas, com a realização de grandes aterros, sem que a própria comunidade, que está sendo diretamente afetada, tenha conhecimento dos impactos dessas obras?”, questionou a urbanista Manoela Jordão.
Organizações apresentam denúncias ao MP
O CPDH, a Somos Todos Muribeca e a Comissão Ambiental de Jaboatão têm realizado denúncias sobre os aterros no Ministério Público de Pernambuco. Em 2016, o MPPE notificou a empresa de engenharia SAM por ter desviado de forma irregular o curso do canal da Mariana.
O órgão afirmou que a empresa não havia apresentado estudos de impactos ambientais e não teria o licenciamento prévio da Prefeitura de Jaboatão para realizar as obras na área de APP.