por Ana Paula Rocha, do Mangue Jornalismo

Quando se mudou de bairro em janeiro de 2023, a estudante secundarista Sarah Regina, 17, tinha um motivo para ficar feliz, pois sua família iria para um imóvel próprio. O novo endereço era numa localidade na zona norte de Aracaju, cidade onde sempre residiu. Contudo, desde a mudança, Sarah diz que “às vezes, sinto que eu estou perdendo a minha vida”. Ou que, pelo menos, está perdendo muito tempo de sua vida.

Matriculada no Centro de Excelência Atheneu Sergipense, o maior e mais bem conceituado colégio estadual de Sergipe, Sarah acorda às 4h30 para estar no ponto de ônibus às 5h40, pois as aulas – que são em período integral – começam às 7h. O Atheneu, como é popularmente conhecido, fica no bairro São José, região central de Aracaju, enquanto que Sarah reside em um loteamento na área fronteiriça entre os bairros Porto Dantas e Japãozinho, na zona norte. O que a separa diariamente da escola é a deficitária oferta de ônibus em uma cidade que se gaba de ser “a capital da qualidade de vida”.

Aracaju foi fundada em 1855 para assumir o posto de capital ocupado anteriormente por São Cristóvão, uma das cidades mais antigas do país. Na vanguarda das práticas de planejamento urbano da época, a área central do município foi pensada pelo engenheiro militar Sebastião José Basílio Pirro como um tabuleiro de xadrez. Foi a partir de lá que se assentou a modesta população inicial estimada em quatro mil habitantes.

Mais de um século e meio depois, os resultados da aplicação do planejamento na expansão de Aracaju podem ser vistos apenas em bairros de classe média alta da zona sul. Ruas largas, bem sinalizadas e com asfaltamento plano na Coroa do Meio, Jardins e Treze de Julho, por exemplo, nasceram sobre oaterramento desenfreado de manguezais, particularmente durante a ditadura militare década de 90, como aMangue Jornalismojá reportou.

Em bairros como o Japãozinho e Porto Dantas, no outro extremo da cidade, o crescimento com a venda de lotes de terra e construção de conjuntos habitacionais não tem acompanhado necessidades de transporte público e saneamento básico. O Anuário Estatístico 2023 divulgado pela Secretaria Municipal do Planejamento, Orçamento e Gestão de Aracaju com base em dados colhidos em 2022 informa que 8.361 pessoas moram no Japãozinho.

Apesar da crescente população, o bairro possui um número de ônibus menor do que o da Treze de Julho, um dos metros quadrados mais caros de Aracaju, onde vivem 8.318 moradores: cinco linhas possuem rotas que adentram o bairro, além de uma boa oferta de ônibus que passam nas vias adjacentes às suas avenidas principais. No Japãozinho, são apenas duas linhas.

“É de 40 em 40 minutos de um para o outro em horário de pico. Parece que gente que mora em periferia só pode trabalhar, porque só tem [ônibus] em horário de pico. Se for um horário tipo 9h não tem, porque é repouso [dos motoristas]. Depois vem lá pra 10h20, 10h40”, explica Sarah.

Atualmente, apenas três ônibus atendem a demanda de todo o Japãozinho: dois veículos fazem a mesma rota, mas em sentido inverso, e um menor (apelidado de “ligeirinho”) percorre uma rota mais curta recolhendo os moradores do bairro até o Terminal de Integração do Maracaju, um dos cinco existentes na capital sergipana.

Em todo o município, o preço da passagem é de R$ 4,50 e os passageiros não pagam novamente ao chegar nos terminais de integração. Contudo, devido à pequena oferta no Japãozinho, há quem opte por pegar o transporte conhecido como lotação que só vai até o Terminal de Integração do Centro. A passagem nesse transporte também custa R$ 4,50, mas os passageiros são deixados do lado de fora do terminal, tendo que pagar para entrar. Tanto as lotações quanto o ligeirinho são menores que um ônibus comum e não possuem rampas de acesso para cadeirantes.

Na última quinta-feira, dia 26 de setembro, a reportagem visitou o Japãozinho à tarde, fora do horário de pico de circulação de trabalhadores, e constatou a demora dos ônibus, além do precário estado de conservação dos veículos disponibilizados para a população do bairro.

A dona de casa Rayla Silva, 27, que há cinco anos mora na Ocupação Beatriz Nascimento, relata os mesmos problemas listados por Sarah. Mãe de dois meninos e grávida pela terceira vez, Rayla explica que gasta R$ 50 em um aplicativo de transporte para levar os filhos à escolinha de futebol e retornar para casa – isso quando os rendimentos permitem. Como as aulas das crianças ocorrem três vezes por semana das 17h30 até por volta das 20h, utilizar o transporte público significa chegar em casa muito tarde, o que é arriscado. “Aqui [no Japãozinho] é como se não existisse ninguém”, resumiu Rayla sobre o tratamento dispensado aos moradores pela administração pública municipal.

Além da mobilidade seletiva, ela ressalta a falta de agentes de saúde e a dificuldade em conseguir vagas nas creches e escolas do bairro. Seus filhos tem 9 e 11 anos e utilizam ônibus escolares para frequentar as aulas no próprio bairro do Japãozinho. Já os estudantes mais velhos enfrentam também outros desafios diários, pois não existem escolas públicas de ensino médio no bairro. A maioria desse contingente de adolescentes depende exclusivamente do transporte municipal para ter acesso à educação básica gratuita.

Irregularidades na licitação

Entre os trabalhadores, muitos se deslocam para outros municípios da Região Metropolitana de Aracaju (RMA) por conta do emprego, o que adiciona mais tempo de espera em terminais de integração. Junto com Aracaju, as prefeituras de Nossa Senhora do Socorro, Barra dos Coqueiros e São Cristóvão lançaram este ano a primeira licitação de transporte público da história da região metropolitana. Não demorou para vir à tona uma série de irregularidades envolvendo a licitação, desde o beneficiamento de certas empresas até problemas orçamentários no subsídio das tarifas.

O pai de Sarah foi, por anos, um dos trabalhadores que dependia do transporte público para chegar à cidade de Barra dos Coqueiros, onde trabalhava como eletricista. Hoje ele aguarda a aprovação da aposentadoria por motivo de saúde. Recentemente, durante uma situação de emergência médica, a família precisou chamar um carro por aplicativo, o que Sarah define como “luxo” restrito a situações de vida ou morte. Ela mesma tem observado a piora de sua saúde devido ao estresse de não ter acesso aos ônibus com a regularidade necessária e presenciar constantes episódios de violência no transporte público.

“Você vê que afeta, fica todo mundo muito frustrado. Eu mesma venho estudar e fico voando porque a mente tá cansada. Aí fica, tipo, ‘Ah, estudante só estuda’. E tudo que eu passo pra vir pra uma escola? Eu não convivo com a minha família, tem dias que eu nem janto, eu vou dormir porque eu tô cansada”, Sarah relatou à reportagem.

Em 2022, o Núcleo Aracaju do Observatório das Metrópoles lançou o ebook de download gratuito Reforma Urbana e Direito à Cidade – Aracaju, organizado por Sarah Lúcia Alves França, professora adjunta do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Sergipe (UFS). O livro faz parte de uma coleção com 17 obras que incluem outras capitais, como Porto Alegre, Salvador, São Paulo e Belém. Um dos capítulos do volume dedicado a Aracaju aborda a mobilidade urbana na RMA e lembra que a capital não tem um Plano de Mobilidade Urbana referendado pela Câmara de Vereadores, dessa forma perpetuando os problemas para o livre e democrático acesso à cidade.

Em entrevista à Mangue, Adriana Oliveira, 37, também moradora da ocupação Beatriz Nascimento, no Japãozinho, falou sobre a impossibilidade de acessar opções de lazer fora do bairro. Os horários de circulação dos ônibus aos finais de semana são ainda mais restritos. “O ligeirinho só funciona até o meio-dia no sábado, e no domingo só tem um ônibus” para atender aos mais de 8 mil moradores, explicou a moradora.

Com tantas limitações para desfrutar de direitos básicos, Sarah teme pelo seu futuro. Ela pretende cursar licenciatura em História na UFS, a única instituição pública de ensino superior do estado, mas prevê que as dificuldades causadas pelo escasso número de ônibus e linhas será o principal empecilho. “Eu sou muito ansiosa, de chegar a ter crise de pânico, porque junta tudo: eu aí querendo prestar vestibular, um transporte [público] que não me atende, o lugar onde eu moro… Eu já cansei até de pensar se eu realmente quero fazer Enem,” explicou.

Uma capital sem plano de mobilidade

Em entrevista para a Mangue, o arquiteto e urbanista Ricardo Mascarello, que há anos pesquisa sobre mobilidade urbana e outras questões relacionadas ao uso do espaço urbano em Aracaju, explica que há uma particularidade na zona norte da capital sergipana que torna a circulação de ônibus do e para o bairro Japãozinho ainda mais complicada.

“A conformação espacial de Aracaju e sua localização termina criando uma barreira do Japãozinho ao restante da cidade devido à topografia da região, e o Parque da Cidade impede a sequência da malha viária e suas conexões com a zona central da capital. Esta situação é decorrente da própria forma urbana e espacial da zona norte aracajuana,” disse Mascarello.

Ele também destaca a urgência de revisar o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de Aracaju, escrito há 24 anos, além da construção do Plano de Mobilidade Urbana da cidade, dois documentos que precisam incluir, além dos ônibus, outras possibilidades de transporte. “Devemos implementar e fomentar o uso da bicicleta com ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas, e em algumas localidades da zona norte até mesmo estudar a viabilidade do transporte fluvial pelo Rio do Sal”, ressaltou o urbanista.

Prefeitura silencia

A Mangue Jornalismo contatou a Prefeitura de Aracaju e a Superintendência Municipal de Transporte e Trânsito (SMTT) questionando o porquê de ser mínima a oferta de linhas e de ônibus para os residentes do Japãozinho, e qual o motivo para manter veículos visivelmente velhos e sem acessibilidade ainda em circulação no bairro. Até o fechamento da reportagem, não recebemos nenhum retorno. A matéria será atualizada caso haja manifestações.

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