Salvador (BA) – A saga dos moradores do Buracão contra o sombreamento da orla continua em Salvador. Enquanto pressionam o poder público para barrar a construção das duas torres de luxo na rua Barro Vermelho à beira-mar, os integrantes do movimento SOS Buracão foram surpreendidos pela presença de engenheiros vindos de São Paulo, que analisaram os três terrenos, dois unificados, adquiridos pela Odebrecht para o início das perfurações no solo.

O que era mistério por parte da empreiteira veio à tona. Antes, precisamos voltar a agosto de 2023, quando a secretaria municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur), questionada pelo grupo e pela imprensa, declarou que não havia nenhum projeto multi-residencial em tramitação. Contudo, em uma audiência pública realizada em 24 de abril de 2024, com o apoio do Ministério Público da Bahia (MPBA), descobriu-se que a prefeitura de Salvador concedeu os alvarás de número 24.340 e 24.341 – documentos acessados pela reportagem e disponíveis mais abaixo – para as obras da Odebrecht na praia do Buracão em outubro de 2023, evidenciando a falta de transparência e a conivência das instituições com obras que impulsionam a devastação ambiental.

Esses alvarás autorizam a construção de dois edifícios de 15 e 16 andares, medindo aproximadamente 70 e 74 metros, na perspectiva de quem está com os pés na areia — que bloqueiam a ventilação natural, comprometem a mobilidade da área e invadem 1.700 m² de terreno de marinha, que pertence ao Patrimônio da União, lançando sombra sobre toda a extensão da praia. A ausência de luz solar nesse ambiente – uma violação da Lei Municipal 9.148/2016, que regula o sombreamento das praias – impacta negativamente o uso da área pública, favorecendo a proliferação de bactérias e micro-organismos. Ainda empacado, não foi para votação o projeto de lei (PL n.º 318/2023) criado pelo presidente da Câmara Municipal, vereador Carlos Muniz (PSDB), que pretende tornar de utilidade pública os terrenos adquiridos pela Odebrecht para conceber um estacionamento e um mirante para contemplar as baleias que aparecem nos mares soteropolitanos.

Agora, o movimento SOS Buracão exige que o Ministério Público Federal (MPF) tome as medidas necessárias para embargar as obras antes que os danos ao meio ambiente se tornem permanentes.

Para o economista e presidente da associação de moradores, Miguel Sehbe, trata-se de uma indústria da degradação já instalada em Salvador. “É uma agressão ambiental enorme, e eu não sei como existem renomados, arquitetos, engenheiros e técnicos que participam disso. Todos que assinaram o projeto estão colocando suas carreiras em risco”, aponta Miguel, ao sinalizar outro agravante. Levantando uma hipótese, ele afirma que, se essa degradação for provada como proposital, poderá ganhar o rótulo de intenção criminosa, pois uma destruição ambiental com o propósito de ganho financeiro se torna um ato ilícito.

Ele atualiza que o SOS Buracão está com três frentes abertas juridicamente: a primeira no MPBA, a segunda no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA), onde foi protocolada uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que solicita um posicionamento, com pedido cautelar, em relação à construção de espigões na orla de Salvador, especialmente no caso do Buracão. Essa ação conta com o apoio da Frente Parlamentar composta pelos partidos PT, PCdoB, PSOL e PSB, além de deputados e vereadores engajados em pautas ambientais. A terceira frente está no Ministério Público Federal (MPF), em uma ação que será anexada ao mesmo processo que envolve a decisão da Justiça Federal de 2008, que demoliu todas as barracas de praia da orla de Salvador que funcionavam na areia, faixa que pertence à União.

E, como o caso dos espigões também envolve patrimônio da União, os moradores possuem duas certidões de ônus que comprovam que os terrenos destinados às torres são, em parte, de áreas adquiridas pela Odebrecht, enquanto a outra parte pertence à União, estando subordinada à lei federal. Dessa forma, a Sedur não tem autonomia para aprovar em tais instâncias, e a lei federal não permite sombreamento na praia.

Não houve, até o momento, uma ação por parte do MPF; existe um alvará, porém não há obra em andamento. No entanto, assim que um bloco for levantado, será necessário interromper imediatamente. “Nós seremos os primeiros a mandar parar”, enfatiza Sehbe.

Se as leis ambientais fossem consideradas, seria possível construir os dois edifícios com três andares acima e três abaixo do solo, respeitando o limite de nove metros de altura a partir do cordão da calçada. De acordo com o economista, a empreiteira teria um lucro líquido em torno de R$ 15 a 18 milhões. No entanto, ele observa que a Odebrecht deseja um alto faturamento e, para isso, extrapola os limites, buscando um lucro marginal absurdo que vai totalmente contra uma comunidade já estabelecida.

Somando forças ao coletivo, Joseli Chaves Pereira, auditora fiscal, considera assustador saber que foram enganados pelo prefeito Bruno Reis (União Brasil), a autoridade máxima do município, e que só conseguiram acessar as informações sobre os alvarás – que deveriam ser de conhecimento público – devido à pressão do MPBA contra a Odebrecht. “Fizemos várias investidas para proteger o meio ambiente e continuamos lutando para garantir o cumprimento da Constituição Federal”, pontua Joseli.

Quase o dobro do tamanho do Cristo Redentor

A projeção feita pelo SOS revela que, com os pés na areia, uma pessoa estará sob a gigante sombra de dois monumentos de mais de 70 metros, quase duas vezes o tamanho do Cristo Redentor no Rio de Janeiro, que mede 38 metros, incluindo o pedestal. Outro exemplo é o Farol da Barra, um dos principais pontos turísticos da capital baiana, que possui inexpressivos 22 metros, comparados aos espigões da Odebrecht.

Os moradores advertem que a estrutura da empreiteira representa um grave crime ambiental, mascarado como desenvolvimento urbano. As informações dos alvarás alegam que serão, no total, 47 unidades residenciais; um dos edifícios terá 16 apartamentos de 350 m², e o outro, 31 apartamentos de 250 m².

No entanto, a simulação visual que teria sido fornecida pela Odebrecht como item da documentação protocolada na prefeitura está bem diferente da que os arquitetos do coletivo produziram de maneira independente. Os moradores acusam a empreiteira de “maquiar” o projeto, ocultando o avanço da construção em direção ao mar.

Em 2015, a arquiteta e moradora da rua Barro Vermelho, Maria Teresa Brandão Zollinger, cogitou a ideia de comprar um desses imóveis desocupados na vizinhança. Sua intenção era assegurar que não ocorressem construções de prédios por ali, preservando a tranquilidade da vista para o mar, o que não se concretizou, e a Odebrecht fechou o negócio. Ela relata que Salvador sempre teve como principal atrativo sua costa, com as mais variadas praias, sendo essa a principal fonte de lazer para a população e turistas em busca do sol e da brisa tão características da região.

“Em qualquer lugar do mundo, os proprietários desses imóveis abandonados seriam autuados. Aqui em Salvador, se o imóvel está degradado, o relapso proprietário é agraciado com o aumento do potencial construtivo em 50%, possibilitando o desenvolvimento da indústria da degradação”, reflete Maria Teresa.

Por um “levante” ambiental

O engenheiro e coordenador executivo do Gambá (Grupo Ambientalista da Bahia), Renato Cunha, salienta que o levante proposto pelo SOS Buracão é importante para a sociedade encarar a problemática da condição dos prédios na orla marítima de Salvador. Ele deseja que esses espigões não saiam do papel e concorda que essa é uma discussão na qual todos estão envolvidos.

Renato destaca que a organização está unida à sociedade civil e aos moradores no apoio a outros empreendimentos antiambientais que se tornaram realidade, como no bairro de Stella Maris e em Pituaçu. “Queremos que a cidade seja melhor debatida, com um Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) que efetivamente incorpore todas as preocupações quanto à questão ambiental, os efeitos climáticos que poderão ser gerados a partir da verticalização da orla, além do sombreamento e outros aspectos relacionados à circulação de ar, podendo resultar em intensas ondas de calor em Salvador”, reforça Cunha.

De março até agora, o SOS Buracão esteve presente em cinco audiências públicas e promoveu três manifestações nas ruas. No primeiro semestre, o grupo encontrou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que recebeu representantes de diversos movimentos ambientalistas de Salvador e se comprometeu a levar as demandas para análise federal.

Prefeitura nada fala

A prefeitura municipal foi contactada pela reportagem e não se manifestou. Caso os questionamentos sejam respondidos, este texto será atualizado imediatamente.

O que diz a Odebrecht

Procurada, a equipe de comunicação da Odebrecht respondeu que não divulgou nenhuma projeção da fachada do empreendimento e que a imagem que está circulando nas redes sociais do SOS Buracão é completamente distorcida da realidade do projeto protocolado pela OR, tanto em relação ao porte quanto ao sombreamento apresentado.

“Desde que foram planejados, os edifícios propostos para a Rua do Barro Vermelho estão em total conformidade com o PDDU. A OR adota em todos os seus projetos um rigoroso processo de governança e preservação do meio ambiente, que envolve, entre outros fatores, principalmente, os impactos positivos no local em que está atuando e o atendimento a todos os processos de licenciamento exigidos pelos órgãos competentes e necessários para a implantação de seus empreendimentos.”

No que diz respeito a nunca terem entrado em contato com os moradores da rua Barro Vermelho, a Odebrecht mencionou que “sempre esteve à disposição para esclarecer dúvidas relacionadas ao empreendimento e, por diversas vezes, se posicionou em relação aos questionamentos apresentados sobre o projeto, inclusive com representantes de edifícios e estabelecimentos comerciais da rua do empreendimento.” Asseguram que estão abertos ao diálogo e com o mesmo compromisso de desenvolver empreendimentos que promovam o bem-estar da sociedade e a valorização do seu entorno.

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