A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center
Em diversas ocasiões, o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso afirmou sua ascendência negra, que teria sido comprovada pelo trabalho da genealogista Marta Maria Amato, falecida em 2020. Segundo o trabalho de Amato, a bisavó paterna do ex-presidente, Joana Antonia da Rosa, seria identificada como uma pessoa mulata, filha miscigenada de uma mãe negra e um pai branco. A mãe de Rosa, Maria Hermenegilda da Conceição, trisavó de FHC, pode ter sido escravizada. Já o pai, um português de posses, foi José Antonio da Rosa.
A árvore familiar de Cardoso também tem outros ramos que não apontam para antepassados negros – antes o contrário. O tataravô do ex-presidente do Brasil era um coronel que teria usado pessoas escravizadas em uma trágica expedição motivada por ouro. A empreitada teria terminado com a morte de várias dessas pessoas, que, diferentemente dos antepassados célebres da família de FHC, permaneceram anônimas nos registros históricos.
A reportagem procurou o ex-presidente para esclarecer os achados sobre sua árvore genealógica e a relação do antepassado com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores. O político não respondeu à Pública até a publicação.
Quem é Fernando Henrique Cardoso
Fernando Henrique Cardoso nasceu no Rio de Janeiro em 1931. É professor, sociólogo, cientista político, escritor e político brasileiro. Foi presidente do Brasil entre 1995 e 2003. Antes, como ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, implantou o Plano Real (1994), um marco na estabilização econômica do país.
O antepassado célebre que morreu de forma inusitada
Fernando Henrique Cardoso (FHC) é tataraneto do coronel José Manoel da Silva e Oliveira, um brasileiro filho de pai português, nascido por volta de 1771 em Glaura, ou Casa Branca, hoje distrito de Ouro Preto, Minas Gerais. Assim como Cardoso, Oliveira foi um homem de muito poder na política brasileira, com influência nas importantes capitanias de Minas e Goiás, atuando como comandante militar e líder de expedições para encontrar novas minas auríferas nos sertões, similar ao que fizeram os bandeirantes paulistas.
O ápice político de Oliveira teria sido sua nomeação a capitão-general e governador do Pará. O cargo era, na prática, responsável por administrar a capitania. A informação foi compilada por uma genealogia feita pelo primo de FHC, Paulo Roberto Cardoso, atualizada em 2018. A Pública acessou documentos reunidos por Paulo César de Castro Silveira, também parente de FHC, que é autor de um blog que reúne a história da família. Parte das transcrições vem do trabalho do historiador e genealogista Hildebrando Pontes, que viveu entre 1879 e 1940 em Minas.
Contudo, o antepassado não teria chegado a ocupar o posto de governador no Pará devido à sua morte esdrúxula, em 1814, próximo à data em que teria ganho o cargo. Os registros indicam que Oliveira engasgou com um osso de frango. Ele seria atendido pelo médico que viajava na sua comitiva, que teria usado uma vela para empurrar o corpo estranho para o estômago do coronel. “O fato é que não se sabe se o osso foi ou não retirado e poucos momentos depois o ilustre enfermo se estorcia em agudíssimas dores no ventre e garganta e exalava o derradeiro alento”, descreve um dos livros de Pontes.
As circunstâncias peculiares que levaram à morte de Oliveira ainda levantaram a suspeita de assassinato, visto que o militar viajava justamente para o Pará, onde tomaria posse como novo governador. Na época, a capitania era regida por uma junta governativa e a nomeação de Oliveira nunca chegou a se efetivar. Segundo os registros, a suspeita recaiu justamente sobre o médico que atendeu o coronel no engasgo, e que teria sido morto por um dos irmãos do falecido algum tempo depois.
Vidas escravizadas e a cobiça pelo ouro
Segundo os registros que reúnem a história da família de FHC, parte do sucesso político do coronel Oliveira foi alcançada graças às suas expedições para encontrar ouro. Com isso, ele foi nomeado governador superintendente-geral das minas de Goiás.
Ávido por encontrar mais riquezas na região, ele teria partido com um numeroso contingente de pessoas escravizadas em direção à serra das Pitombas, nome dado à formação que hoje integra a serra do Caiapó, em Caiapônia, município no sudoeste de Goiás. A data da expedição é incerta, mas provavelmente ocorreu entre 1804 e 1814, ano de sua morte.
De acordo com o trabalho transcrito por Silveira, a expedição de Oliveira acabou custando a vida de muitas dessas pessoas escravizadas, que acabaram morrendo devido a febres, obrigando o que restou do grupo a retroceder. Já para o coronel, apesar do fracasso dessa expedição, a descoberta de minas na região teria sido proveitosa para futuras empreitadas.
A escravidão foi usada extensivamente no Brasil para a mineração no Brasil. Como resgatou o historiador Francisco Vidal Luna, em um capítulo da sua extensa pesquisa a respeito da demografia no período da consolidação da atividade mineradora, em Minas Gerais, por exemplo, havia um número significativo de senhores de escravos que atuavam com a exploração de ouro.
Além disso, o próprio arraial do Desemboque – área onde hoje está o município de Sacramento, no Triângulo Mineiro, e que foi comandado pelo coronel Oliveira por volta do ano de 1788 – teria sido um antigo quilombo. Segundo a pesquisa de doutorado de Cláudia Damasceno Fonseca, defendida na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais (EHESS), na França, toda a região era conhecida pelos bandeirantes por ser ocupada por poderosos quilombos e pela resistência dos índios Caiapó, que adiaram a colonização branca da área.
“Somente depois de muitas expedições punitivas – organizadas e financiadas por particulares e por diversas câmaras da capitania – é que tais populações puderam ser definitivamente submetidas ou aniquiladas, dando início efetivo à colonização e à ‘conversão’ dos sertões do Campo Grande”, afirma o trabalho.
A pesquisa de Fonseca mostra como a colonização da região foi baseada num esforço do governo colonial de expulsar, matando ou escravizando os povos indígenas e negros quilombolas que ali viviam – inclusive aproveitando-os para a atividade mineradora, com a qual o antepassado de FHC fez sua fama. “Os que não morriam nos combates eram levados de volta para as minas e fazendas de onde haviam fugido, ou tornavam-se objeto de contrabando”, resgata.
Um dos registros históricos do Desemboque mostra que, na área, chegaram a viver 660 escravizados. Segundo escritos de Pontes, o coronel Oliveira foi apontado como guarda-mor do arraial do Desemboque. O guarda-mor era uma autoridade que surgiu em Portugal. A principal função do guarda-mor das minas era apaziguar todo tipo de conflito relativo aos trabalhos de mineração. Era o cargo mais importante na administração local, com atribuições como conceder licenças, repartir as lavras e até mesmo mandar executar quem não pagasse valores devidos.
Escravizados em casa, no testamento, nas posses
A Pública encontrou registros de que a mãe do coronel Oliveira, Joana Francisca de Paiva, a pentavó do ex-presidente, também teria escravizados.
De acordo com uma carta escrita por descendentes de Paiva, ela teria pessoas escravizadas em sua residência, em Glaura, onde nasceu o coronel Oliveira. Na época, o local era chamado de Freguesia Santo Antônio da Casa Branca do Ouro Preto. “Seus companheiros de velhice foram seus fiéis escravos, um casal já velhinho, um ‘preto véio’, como se dizia naqueles tempos, sua mulher já velhinha também, e mais alguns escravos: Clemente, pardo, 32 anos, Pedro, congo, 40 anos. Teodora, 60 anos, crioula. Joaquim, 36 anos, crioulo, Victória, 76 anos parda, e Águida, 73 anos, parda”, diz o texto.
Referência à mão de obra escrava aparece também no testamento de outro filho de Paiva, o capitão Domingos da Silva e Oliveira, irmão do coronel Oliveira. Segundo transcrição do documento, ele teria escrito “declaro que deixo forra a minha escrava Felipa pelos serviços que me tem feito” e “declaro que os bens que possuo são a Fazenda da Conquista com escravos que existem e gado e três moradas de casas nesta Vila”. O capitão Domingos, que segundo os registros se vestia à moda do rei da França Luís XV, com calção de veludo, capa, espada e chapéu de penas, morreu em 1852 em Uberaba, Minas.
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