A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center

Tem início no ano de 1898 a genealogia do ex-presidente brasileiro, Itamar Franco (MDB), morto em 2011 devido a uma leucemia. Ao menos, é essa a data mais antiga na linha do tempo exibida no site do Memorial da República do Presidente Itamar Franco, organização herdeira do Instituto Itamar Augusto Franco, ligada à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e responsável por guardar o histórico oficial do político.

No ano, como destaca o Memorial, nasceu Augusto César Stiebler Franco, o pai de Itamar, um engenheiro que viria a falecer pouco tempo antes do nascimento do filho. O nome de Augusto, nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, acrescentou mais uma importante figura à linhagem dos Franco, que vai muito além do ano de 1898, a despeito do que consta na memória oficial.

Segundo a Agência Pública apurou, há ao menos mais três ascendentes conhecidos de sobrenome Franco na família do ex-presidente: o avô, Arquimedes Pereira Franco; o bisavô, Atabalipa da Cayba Americano Franco; e o trisavô, Vicente Ferreira Franco.

É justamente esse último antepassado que, segundo os registros históricos do Tabelionato do 1º Ofício do Fórum Desembargador Filinto Bastos, que a Pública acessou, teria participado da negociação de pessoas escravizadas. Os registros dão conta de ao menos três, um deles, uma jovem de 16 anos, chamada Maria, oferecida como garantia em uma transação como um imóvel qualquer.

A reportagem questionou o Memorial para esclarecer os achados sobre a árvore genealógica e a relação do antepassado de Itamar com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores. O Memorial respondeu que: “o supervisor do Memorial da República Presidente Itamar Franco encontra-se de férias, não podendo participar do levantamento em questão dentro do prazo estipulado para resposta”. O órgão enviou material publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, que foca na genealogia materna de Itamar.

Quem foi Itamar Franco

Itamar Franco assumiu a Presidência do Brasil entre 1992 e 1995, depois do impeachment de Fernando Collor de Melo. Nascido a bordo de um navio que fazia a rota entre Salvador e Rio de Janeiro, foi registrado na capital baiana. De família mineira, ingressou no Exército em Juiz de Fora (MG), onde também se formou como engenheiro. Também foi prefeito de Juiz de Fora, governador em Minas Gerais e se elegeu senador pelo estado.

Na vila, vendiam-se casas, vendiam-se Marias

Vicente Franco, nascido no Ceará, morreu no Rio de Janeiro em 1863, segundo o obituário da edição do jornal Correio Mercantil de 24 de abril. A causa, de acordo com o periódico, foi “febre algida”, termo usado para descrever quadros febris causados por complicações após infecções.

Antes de chegar ao Rio, o trisavô Franco teria vivido um tempo na Bahia, na antiga Villa do Arraial de Feira de Santanna, que mais tarde originaria a atual cidade de Feira de Santana. Isso é o que aponta o livro de notas número 4 da Villa, referente ao período de 1839 a 1847. O documento foi compilado pelo trabalho de conclusão do curso de história de Maria Alice de Sá Barbosa Mendes, na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), de 2018.

O livro de notas mostra que Vicente Franco teria hipotecado uma casa, isto é, oferecido o imóvel como garantia de uma dívida, na rua da Alegria, em 1842, por 920 mil-réis. Para ter uma comparação, com a ressalva de que é uma aproximação, na obra 1822 de Laurentino Gomes, uma libra esterlina valia cerca de 5 mil réis. Uma libra esterlina em 1822 valeria, hoje, cerca de 100 libras. Então, 920 mil réis valeria em torno de R$ 135 mil.

No mesmo ano, há um segundo registro de hipoteca na mesma rua, dessa vez por 1 conto e 100 mil-réis, ou 1,1 milhão de réis. Este é sinalizado como um imóvel de Franco com a sua esposa, dona Antonia Delmira Franco, trisavô de Itamar. Quem recebeu a garantia, de acordo com as notas, foi o capitão Antonio Augusto Guimarais, com sobrenome escrito dessa forma.

É justamente no mesmo ano, e na mesma Villa de Santana, que Vicente Franco teria participado da negociação de duas pessoas escravizadas, a primeira delas, Maria, de 16 anos. Em 14 de fevereiro de 1842, uma xará da jovem negociada, Maria Thomazia do Nascimento, assina uma escritura de empréstimo que tomou de Franco. No acordo, que valeu 166 mil-réis e teria duração de três meses, Maria, a escravizada, foi posta como garantia tal qual os imóveis da rua da Alegria, caso o empréstimo não fosse quitado. Assim como um imóvel, uma pessoa escravizada poderia ser colocada como garantia de um empréstimo, porque era visto como propriedade. Na Bahia, o preço médio de um escravizado em 1840 chegava a 450 mil réis, segundo o livro Ser Escravo no Brasil, de Kátia Mattoso. 

Dois dias depois, em 16 de fevereiro, o nome de Vicente Franco aparece novamente em um acordo envolvendo uma pessoa escravizada. Dessa vez, ele se chama Gonçalo, identificado como “crioulo”. O acordo, no valor de 100 mil-réis, indica que Antonio Vidál Corrêa Lima, através do seu procurador e filho Antonio Lião Corrêa Lima, teria confirmado a compra de Gonçalo por Franco.

Pessoas vendidas como coisas

As informações de compra e venda de pessoas escravizadas no passado de Feira de Santana são acessíveis graças aos registros históricos do Tabelionato do 1º Ofício do Fórum Desembargador Filinto Bastos. Uma série de documentos que vão de 1830 a 1880 foi recuperada e digitalizada pela UEFS e pelo Tribunal de Justiça da Bahia, num trabalho que buscou resgatar a história da escravidão na região. A catalogação do material teve como objetivo tornar mais prático o acesso aos documentos, auxiliando a comprovar a relação entre senhores e seus respectivos escravizados.

Segundo o vice-coordenador do Cedoc, Aldo Silva, é muito comum não associarmos ao papel de escravizadores o nome de pessoas que desempenharam um importante trabalho social. “É o caso do padre Ovídio, que nomeia uma das praças centrais da cidade”, diz. “Isso porque, por muito tempo, a população não acreditava que havia trabalho escravo aqui na cidade. E há um motivo para isso: proprietários de escravos sempre estiveram ligados ao poder econômico e político, à medida que promoviam uma imagem de que não havia resistência contra esse tipo de organização social.”

São justamente esses registros que mostram um terceiro acordo de pessoa escravizada que envolveria o antepassado de Itamar. Dois anos depois da negociação de Maria e Gonçalo, o nome de Vicente Franco, o parente do ex-presidente, aparece novamente nos registros, dessa vez sendo ele quem teria vendido Antonio, que era parte do dote da esposa, para Fortunato Mascarenhas José, por 500 mil-réis.

Os documentos também indicam que Maria, a jovem escravizada dada como garantia em 1842 entre Vicente Franco e Maria do Nascimento, seria vendida um ano depois, para Anna Aguida Cerqueira, por 400 mil-réis.

Os mesmos registros indicam que o capitão Antonio Augusto Guimarais – o mesmo homem que aparece na hipoteca da casa de Vicente Franco, em 1842 – teria negociado, um ano antes, um jovem escravizado de nome Faustino com Manoel Ferreira de Carvalho. A transação teria ocorrido por 120 mil-réis.

De acordo com os registros, um escravizado também de nome Faustino seria vendido, um ano depois, junto a um grande grupo de “mais de 20 pessoas escravizadas: homens, mulheres, idosos, crianças de 2 anos de idade, saudáveis e enfermos”, numa grande transação de 70 milhões de réis que negociou em uma tacada o engenho chamado de Lixa, seus pastos, cercas e pessoas escravizadas.

Mercado colonial girava à custa de escravizados

Um casal de quintos avós de Itamar Franco, Pedro Antonio da Fonseca e Joaquina Maria dos Prazeres, também teria sido dono de escravizados. 

Em 1802, um inventário dos bens da dupla, que era de lavradores de tabaco e pecuaristas, contou 17 pessoas escravizadas, sendo doze homens e cinco mulheres, dos quais oito eram crianças.

Todos viviam na fazenda do Salgado, em São Pedro da Muritiba, parte do que é hoje o município baiano de Muritiba. Segundo os registros, era lá que vivia Inácio, identificado como crioulo, que trabalhava com “serviço da enxada” e “carreiro”, avaliado em 140 mil-réis; Domingos, identificado como de origem angola, que era vaqueiro, também era usado no “serviço da enxada” e “valia” 140 mil-réis, e Francisco, igualmente notado como angola, do “serviço da enxada” e “fumeiro”.

O levantamento foi feito pela dissertação de mestrado de 2015 de Ana Paula de Albuquerque, do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A pesquisa se baseou em inventários, o rol de fazendas e lavradores do Recôncavo, uma lista de enroladores de tabaco de 1809 e documentos de representações, petições e pareceres.

Segundo o trabalho, a economia do Recôncavo baiano nos séculos 18 e 19 dependeu da mão de obra escrava, e os lucros que esse tipo de cultivo gerou acabaram potencializando o tráfico de pessoas. “O fumo, por sua vez, era a principal moeda de troca para a aquisição desses escravos […] o tabaco da Bahia, além de ter sido produzido para abastecer o mercado europeu, alcançou elevados níveis de exportação através do comércio com a Costa da Mina, pois serviu de incremento para o tráfico de escravos”, descreve.

O casal Pedro da Fonseca e Joaquina dos Prazeres teve como filha Maria Magdalena do Espírito Santo. Ela, por sua vez, foi mãe de Joaquim Antunes da Fonseca, pai de Amélia Pires Pedreira de Cerqueira Lima. Já Amélia se casou com Atabalipa Franco, bisavô do ex-presidente Itamar e filho do casal Vicente e Antônia Franco, que estariam envolvidos nas negociações de pessoas escravizadas em Feira de Santana.

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Agência Pública - Vendem-se Marias: os indícios de escravidão na linhagem de Itamar Franco