Nos últimos meses a página de memes Saquinho de Lixo se tornou objeto de disputas nos tribunais que envolvem questões de autoria, propriedade da marca, alegações de má-fé e práticas ilegais entre os sócios. No dia 22 deste mês, foi publicada a primeira sentença desse embate. A Justiça de São Paulo ordenou que a Meta, empresa proprietária do Instagram e o Facebook, repasse o controle da conta do Instagram da página de memes para os sócios administradores da empresa Saquinho de Lixo Mídias Criativas Ltda, Alan Pereira e Sofia Carvalho. A Meta tem até hoje, sexta-feira (29), para dar o acesso, sob pena de multa.

A sentença é ainda em primeira instância e cabe recurso.

Com mais de 2 milhões de seguidores, o Saquinho de Lixo é uma das mais populares páginas de memes do Brasil. Foi fundada em 2018 a partir de um grupo de WhatsApp com jovens, em sua maioria, pernambucanos. Ganhou visibilidade não só pelas postagens engraçadas – ou sarcásticas –, mas também pelo posicionamento político. O primeiro post do tipo foi quando o ex-deputado federal Jean Willys deixou o País. Depois, vieram críticas à extrema direita, ao derramamento de óleo no litoral nordestino e à forma criminosa com que o governo Bolsonaro tratou a pandemia do coronavírus no Brasil.

Ao longo dos anos, a configuração do que era um “coletivo” para atualização de uma página de memes foi mudando, até chegar ao formato atual de seis sócios – Alan Pereira, Davi Moraes, Júlio Emílio, Luis Porto, Rodrigo Almeida e Sofia de Carvalho. Com o aumento do número de seguidores, veio também o dinheiro de publicidade. O Saquinho de Lixo se tornou uma empresa formal, com CNPJ e um faturamento anual de cerca de R$ 1 milhão.

Virou também um case de sucesso: ganhou por duas vezes o Meme Awards na categoria de melhor Comunidade LGBTQIA+ e foi citado pela prestigiosa revista Wired como um dos 50 nomes “que expandem a criatividade no Brasil”. Além disso, os sócios deram diversas entrevistas para a imprensa. No ano passado, o modelo de negócios se expandiu, lançando a operação da Saquinho Mídias Criativas LTDA, “um hub de soluções de conteúdo voltado a empresas e influenciadores que queriam profissionalizar a comunicação por meio da linguagem dos memes”.

As tarefas criativas eram divididas pelos sócios em turnos, geralmente de três por dia. Cada sócio ficava responsável por um turno – além do Saquinho, todos eles têm outros trabalhos. Os posts eram revisados, ou seja, nenhum postava o que bem entendesse, tendo que haver a concordância dos demais. Todos tinham acesso às contas de e-mail e do Instagram.

Contudo, na noite do dia 14 de julho, um domingo, o mundo dos memes ficou em polvorosa: cinco dos seis sócios emitiram um comunicado conjunto afirmando que tinham ficado sem acesso à conta do Instagram. “Em um ato sem explicação, um integrante da equipe tomou todo o controle das páginas para si”, dizia o trecho da nota, que já avisava que o grupo estava recorrendo ao Facebook e ao judiciário para reaver os acessos.

O único que não assinava a nota era Davi Moraes. É ele quem segue alimentando a conta no instagram desde então.

“Não foi uma briga de sócios”, enfatiza Júlio Emílio, um dos fundadores do Saquinho, sobre o dia em que perderam acesso à conta. “Não teve briga, simplesmente Davi mudou a senha e retirou o nosso acesso”, contou

Não que brigas e tretas fossem incomuns na história do Saquinho. “Os seis que estão hoje são pessoas que realmente duraram e aguentaram muitas paranoias, muitas brigas, muitas tretas pesadíssimas, muitas eras”, revelou o professor Rodrigo Almeida, um dos sócios, em um podcast em março deste ano.

Na decisão judicial, o acesso aos sócios administradores foi garantido pelo reconhecimento de que Júlio Emílio é o titular da marca registrada “Saquinho de Lixo”. A titularidade da marca concede a Júlio o direito de ceder o registro, licenciar o uso e proteger a integridade e reputação da marca.

Foi em em 4 de agosto de 2020 que Júlio registrou a marca “Saquinho de Lixo” no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) . Em entrevistas antigas de outros fundadores, a versão apresentada também sempre foi a de que o nome é criação de Júlio Emílio, inspirado pela famosa campanha contra o lixo nas praias da Prefeitura do Recife.

Muitos publis e mudança nos posts

Desde o dia em que Davi Moraes passou a tomar conta sozinho da página, os demais sócios já contaram pelo menos 12 posts marcados com a hashtag #publi, o que indica que foram publicados mediante pagamento. Há posts para marcas como a Nestlé, por exemplo, algo que antes não passaria pelo crivo da sociedade, que fazia um filtro de que marcas se alinhavam à página de memes.

O dinheiro dessas publicidades não caiu na conta empresarial do Saquinho de Lixo. Um post no feed da página custava, até julho, em torno de R$ 20 mil.

Neste período em que Davi está operando o Saquinho sozinho também houve polêmicas com postagens. Em um dia especialmente pesado do bombardeiro contra a Palestina, a página fez uma publicação bastante positiva sobre o governo de Israel. Choveram comentários negativos do público da Saquinho: pessoas de esquerda, contrárias à guerra e críticas de Benjamin Netanyahu. O post foi retirado do ar alguns minutos depois, sem explicação.

Além do processo para recuperação da conta, há uma disputa pelo registro da marca junto ao INPI. Davi teria tentado registrar o nome Saquinho de Lixo em outra categoria. “Entramos na Justiça e a juíza desse caso pediu que a polícia investigue se há outros crimes. Fomos ouvidos na delegacia e Davi também foi intimado”, contou Júlio. O inquérito policial, que investiga se há ou não um possível crime de estelionato, ainda não foi concluído. Há também um processo, por danos morais e materiais, da empresa contra Davi. E outro de Davi contra a empresa.

Página de um homem só?

A Marco Zero procurou Davi Moraes e solicitou a versão dele sobre o caso. Perguntamos também o motivo da página ter apagado o post sobre Israel e também para onde foi o dinheiro que entrou nesses últimos meses em que apenas ele tem acesso à página: se o dinheiro foi para a conta do CNPJ do Saquinho de Lixo e se foi dividido entre os demais sócios.

Davi preferiu responder por meio de uma nota assinada por seus advogados, Fábio Dutra, Bianca Belo e Laís Olegário de Moraes. O comunicado tem três páginas com linguagem forte e foca em ataques pessoais a Júlio Emílio. Os demais quatro sócios não são nem citados no texto – em um ponto são chamados apenas de “outros criadores de conteúdo”.

Apesar da extensão do comunicado, Davi não respondeu a todas as perguntas da Marco Zero, como, por exemplo, o motivo de ter apagado o post polêmico sobre Israel.

Contrariando diversas matérias e entrevistas anteriores em que o Saquinho é apresentado como um coletivo (como essa aqui, com a participação de cinco sócios ), o comunicado coloca Davi Moraes como o único dono do Saquinho: “a página no Instagram é de Davi Moraes de fato e de direito”, diz.

Nesse vídeo aqui, Davi inclusive fala que ele e Julio criaram juntos o grupo de WhatsApp que deu origem ao Saquinho de Lixo, ainda que outros sócios, colaboradores e matérias apontem o artista plástico Aslan Cabral como o articulador do grupo – tempos depois, ele foi expulso do Saquinho.

Já nesta entrevista conjunta, Júlio fala que foi ele quem criou o nome, sem ser contestado por Davi ou nenhum outro sócio. Quando foi entrevistado sozinho para este vídeocast, Davi fala como representante de um coletivo: “das pessoas originais que começaram, somos seis” e que “a gente foi virando empresa com o tempo. Até antes de se perceber (como empresa), a gente já era”.

A nota enviada para Marco Zero, porém, desvincula a página do Instagram da empresa criada em 2023, como se os sócios fossem apenas da empresa e a página do Instagram fosse algo à parte, apenas de Davi. E dá uma nova versão da origem do Saquinho como empresa:

“Foi Júlio Emílio quem convenceu Davi Moraes a permitir que as campanhas veiculadas em sua página (de Davi) fossem agenciadas pela SLMC Ltda., empresa com seis sócios, Júlio Emílio (16,6% assim como os outros quatro) e Davi Moraes (17%) entre eles”.

Sobre o impedimento dos outros sócios no acesso à conta do Instagram, a nota diz que houve uma invasão da conta logo após Davi “não ceder à pressão de Júlio Emílio para entregar seu acesso-mestre à página de Instagram”. E que Davi Moraes perdeu acesso à conta e só conseguiu recuperar por meio de reconhecimento biométrico facial – era no celular dele que estava a verificação de segurança para a conta. “Importante ainda lembrar que quando retomou a página, ainda sem saber por quem teria sido excluído, Davi Moraes deu acesso a Júlio Emílio e aos outros criadores de conteúdo para que cumprissem os contratos publicitários mas Júlio Emílio se recusou, tendo dito que só entraria se a página lhe fosse cedida e o titular saísse. Ou seja, a alegação quanto a lucros cessantes (que Júlio Emílio chama de “prejuízos”) não condiz com a realidade, ele que descumpriu contratos”, diz o comunicado.

Na verdade, o processo na Justiça Comum de São Paulo pede “acesso-mestre” para os sócios-administradores da empresa, que são Sofia e Alan, e não para Julio Emílio, como o comunicado de Davi sugestiona. A decisão judicial explicita que “Davi não era administrador da sociedade autora, para reclamar o direito ao ‘acesso mestre’ às contas da Saquinho de Lixo”.

Dificuldades em investigações virtuais

Um ponto que foi alvo de discussão no processo judicial foi quem criou o e-mail que está vinculado à conta do Instagram. Júlio conta que criou o e-mail na época do grupo de WhatsApp para trocas de memes. Como boa parte dos e-mails e logins que diz já ter tido na vida, colocou o “123” ao final, já que só “saquinhodelixo” tinha dono.

Conseguir perícias que provem alterações como e-mail de resgate e nome do proprietário de conta de um e-mail não são tarefas fáceis. Enquanto os crimes e fraudes virtuais aumentam exponencialmente – houve um aumento de 65,2% entre 2021 e 2022, ultrapassando mais 200 mil registros no Brasil – a preparação dos agentes públicos de segurança e do judiciário para lidar com essas investigações não tem acompanhado o mesmo ritmo.

“Há ainda um despreparo dos agentes de segurança e do judiciário em lidar com essas questões. As investigações criminais por vezes esbarram nas dificuldades técnicas das autoridades em relação ao funcionamento de determinadas tecnologias, como por exemplo a criptografia. Há também uma desorbservância a direitos básicos, como a privacidade e a proteção de dados pessoais, pois não é porque está sendo investigado um crime que as pessoas investigadas ou outras de suas relações pessoais perdem esses direitos. No caso de investigações criminais, temos também o problema da falta de regulação do uso de dados pessoais”, comenta a advogada Raquel Saraiva, especialista em direito digital.

A advogada aponta que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) não se aplica a investigações criminais, o que torna a atividade investigativa insegura sob esse ponto de vista, “já que os dados pessoais são utilizados pelas autoridades sem qualquer limite, apesar de haver um comando constitucional que trata a proteção de dados pessoais como direito fundamental”.

Já no judiciário, a especialista aponta que há ainda uma confusão de conceitos e aplicação de leis específicas. “Por exemplo, o Marco Civil da Internet foi aprovado em 2014 e ainda hoje há uma confusão nos conceitos de provedor de aplicação e provedor de conexão, que têm tratamentos diferentes. É preciso uma atualização desses agentes e uma capacitação técnica em conceitos específicos para uma melhor aplicação da lei”, diz.

Sobre a transparência e a colaboração das empresas de tecnologia com o judiciário brasileiro, Raquel Saraiva afirma que empresas como Meta e Google, que têm representação no Brasil, são mais colaborativas do que o Telegram, por exemplo, que reiteradamente ignora contatos de autoridades brasileiras e cumprimento de ordens judiciais. “Neste ponto, poderia melhorar a transparência das empresas, no aspecto de comunicar ao público como essa colaboração com as autoridades é executada. Poderiam incluir nos relatórios de transparência questões como quantidade de atendimentos aos chamados das autoridades e os tipos de casos em que isso se dá, com que frequência, esse tipo de coisa, além dos casos em que essa colaboração foi negada e a justificativa para tanto. Ser mais transparente com os usuários pode aumentar a confiança nos serviços das empresas”, afirma a advogada.

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