Algoritmo racista explica por que conteúdo produzido por negros fatura menos no YouTube

Por Giovanna Carneiro

Em 2014, aos 15 anos de idade, eu decidi parar de alisar os cabelos e iniciei o processo de “transição capilar”. Foi naquela mesma época que passei a ler mais sobre questões raciais e miscigenação no Brasil, porque até então eu não me autodeclarava uma mulher negra. Alisar os cabelos era uma forma de me camuflar, de pertencer à sociedade enquanto uma pessoa que podia desviar ou se esconder das práticas racistas, mas a verdade é que isso nunca aconteceu. O racismo sempre esteve presente, mesmo que eu tentasse burlá-lo apagando meus traços negróides.

A transição capilar passou a ser um dos assuntos mais comentados nas redes sociais em 2015.

Diversas meninas e mulheres utilizavam a internet para falar sobre suas experiências e incentivar que cada vez mais pessoas pudessem experimentar o processo de alisamento e deixassem seus cabelos naturais à mostra. Lembro que conhecer o trabalho da youtuber Nátaly Neri foi fundamental para que eu me sentisse à vontade para tomar a decisão de iniciar a transição capilar. Especificamente um vídeo em que ela falava sobre os diferentes tipos de cabelos cacheados e crespos, confrontando as propagandas de marcas de cosméticos que defendiam o “cacho perfeito”. Desde então, passei a acompanhar o trabalho de Nátaly em seu canal que, agora, conta com 814 mil inscritos.

Através de Nátali conheci também o trabalho de Gabi de Pretas, uma mulher negra retinta que também produz conteúdos relacionados a pautas raciais em seu canal do Youtube, hoje com 658 mil inscritos. Em um dos vídeos mais assistidos do seu canal, Gabi faz um tour pelo seu rosto e traz um relato emocionante para falar sobre o processo de aceitação de seus traços negros.

Olhando para trás, é inegável a importância que o trabalho das youtubers negras tiveram no meu processo de transição capilar e do resgate de uma identidade negra.

São muitos os influenciadores negros e negras que utilizam o Youtube e outras redes sociais para falar de temas relevantes para a comunidade negra e na promoção do antirracismo. Porém, são poucos aqueles e aquelas que conseguem ganhar visibilidade suficiente para se profissionalizar como produtores de conteúdo e monetizar seus trabalhos. Muitos desses profissionais já denunciaram a dificuldade em ter capilaridade na plataforma.

Por isso, a fim de impulsionar a carreira de youtubers e influenciadores digitais negros, a empresária Egnalda Côrtes abriu a agência Côrtes Assessoria em 2017. A empresa é responsável por gerir carreiras de dezenas de pessoas negras, entre elas, Nátaly Neri e Gabi de Pretas, produtoras de conteúdos digitais que disputam um mercado que impõe desafios, sobretudo para aqueles e aquelas que utilizam suas redes para pautar questões raciais.

Para o historiador e idealizador do canal “Caçador de Histórias”, Flávio Muniz, as dificuldades que os youtubers negros enfrentam começa no processo de produção.

“A gente muitas vezes não tem uma boa estrutura tecnológica: uma câmera boa, um equipamento bom, um computador bom. Nós não temos expertise, porque é caro para você ter alguns pacotes de programas de edição. Eu edito meus programas hoje no Adobe Premiere, mas na época [2016] eu tinha programas piratas, craqueados, que eu utilizava da forma que eu podia. São dificuldades que outros produtores que têm acesso à tecnologia, por terem recursos financeiros, não tinham. Mas a população negra não tem tanto acesso financeiro a essas tecnologias, por uma questão econômica mesmo, uma questão de que nós estamos excluídos economicamente também”, contou o historiador.

Dono de um canal com 149 mil inscritos, Muniz utiliza o Youtube como uma sala de aula onde compartilha pesquisas sobre a história da África e dos seus povos. Seu objetivo é criar um acervo de ensaios e estudos na plataforma de streaming.

Atualmente trabalhando de forma independente e exclusiva na produção de conteúdos para a plataforma, o professor já expôs seu descontentamento com o Youtube e a dificuldade em monetizar seu trabalho, mas explica que insiste em estar presente no espaço por entender que o Youtube é um lugar de disputa onde as pessoas negras precisam ser protagonistas. “Como disse o Peter Burke, ‘é função do historiador lembrar a sociedade aquilo que ela quer esquecer’”, defendeu Muniz.

Ciberespaço em disputa

De acordo com o ranking da plataforma de análise de dados Social Blade, a maioria dos canais do Youtube que possuem o maior número de visualizações no Brasil são canais produzidos por pessoas brancas.

A monetização no Youtube acontece através das exibições de anúncios transmitidos durante os vídeos, para isso o produtor de conteúdo precisa solicitar a monetização de seu canal e passar a atender as diretrizes do Programa de Parcerias do Youtube (YPP). Nessa lógica, canais que possuem maiores números de inscritos e de visualizações tendem a faturar mais. Com isso, é possível afirmar que os canais de pessoas brancas são os que mais lucram na plataforma.

E o que pode explicar o maior interesse do público por consumir os conteúdos feitos pelos youtubers brancos?

Para o pesquisador em Comunicação na UFPE e integrante da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade, Andi Almeida, a resposta está nas dinâmicas sociais do Brasil, dinâmicas essas que acontecem fora do mundo virtual e que apenas são reforçadas no ciberespaço.

“A ideia de racismo algorítmico, que é um conceito cunhado no Brasil pelo Tarcízio Silva, afirma que os algoritmos são racistas porque a sociedade é racista e ele reflete as próprias mazelas da sociedade. Por isso, não surpreende que produtores negros, sobretudo aqueles que fazem vídeos pautando questões do racismo, precisam lidar com menos visualizações e dificuldade de monetização, é o próprio racismo operando também no meio digital”, afirmou o pesquisador.

“Se por um lado a internet surgiu como um ambiente onde a gente consegue se colocar para criar novas narrativas emancipatórias e disputar espaços, por outro ela foi capturada pelas grandes corporações e acaba sendo um espaço ocupado majoritariamente por quatro redes sociais. Então, o produtor de conteúdo negro com um viés emancipatório é muito importante porque cria uma base de conhecimentos, no entanto a internet cria um certo vício fazendo com que a gente não se aprofunde nas coisas, porque todo o processo começa e termina ali, quando, na verdade, deveria ser o início de uma pesquisa mais extensa”, concluiu Andi Almeida.

Por reconhecer a importância de produzir conteúdos para ampliar a base de conhecimento de seu público na luta antirracista, o professor Flávio Muniz reforça a importância de ter mais pessoas negras como youtubers, pois a plataforma digital “é um espaço de disputa que, na verdade, é também um espaço de construção de identidades”.

Neste mesmo sentido, Andi Almeida acredita que a melhor forma de enfrentar as dificuldades impostas na produção e valorização dos conteúdos digitais de pessoas negras é ocupando o ciberespaço de forma consciente.

“Essa noção de que a gente deveria abandonar as tecnologias ou simplesmente ter uma mera recepção passiva é um falso dilema. Nenhum desses caminhos é interessante, o que nos interessa é a apropriação dessas tecnologias para nossa busca constante de emancipação pessoal e coletiva. Na minha perspectiva, nós, minorias políticas, devemos sim nos apropriar de todas as tecnologias e suas ferramentas disponíveis para que possamos através delas também disputar as narrativas”, afirmou o pesquisador.

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