‘Merecemos mais dignidade que a escala 6X1’, diz trabalhadora negra periférica
“É como se vivêssemos só para o trabalho. Não vejo meus filhos crescerem, não consigo participar dos encontros em família”. O relato emocionado é da caixa de supermercado Luíza Aguiar, 38, que há 4 anos trabalha na escala 6X1 no Jardim João XXIII, zona oeste de São Paulo.
Milhares de outras mulheres negras e periféricas vivem a realidade de trabalhar seis dias na semana e folgar apenas um, sem tempo para cuidar de si e da família ou de terem direito ao lazer e ao estudo.
A realidade delas ganhou luz na última semana, após a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) apresentar uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para reduzir a jornada semanal máxima de trabalho de 44 para 36 horas e por fim a escala 6X1.
A discussão tomou conta das redes sociais e dos debates no Congresso Nacional: o texto alcançou as 171 assinaturas de deputados necessárias para ser protocolado e começar a tramitação na Câmara.
A intensa mobilização nas redes sociais pressionou parlamentares a assinarem a PEC. Para além das redes, milhares de pessoas foram às ruas em vários estados do país em um ato pela aprovação da medida, realizado no último dia 15. A manifestação foi coordenada pelo grupo Vida Além do Trabalho (VAT), idealizado pelo vereador da cidade do Rio de Janeiro, Rick Azevedo (PSOL).
Mulheres exaustas
A jornada 6X1 é muito comum no setor de comércio e serviços, como shoppings, farmácias e supermercados. Segundo o site de busca de empregos Indeed, o piso salarial de um vendedor em Shopping é de R$2.031, de um atendente de farmácia R$1.864 e de um operador de Supermercado R$1.745, em São Paulo, capital.
“A sobrecarga era absurda: arrastar equipamentos, carregar caixas pesadas, segurar manequins mais pesados que eu. Cheguei a pesar 45 kg de tanto esforço físico”, relata Fernanda Freitas*, que trabalhou na escala 6×1 dos 17 aos 21 anos, em uma grande fast fashion em um shopping em São Paulo.
Na época, moradora de Guarulhos, ela levava 1h de deslocamento até o trabalho, nunca saia no horário e não recebia horas extras. “Os horários eram totalmente irregulares e a pressão para bater meta, fazer cartão e manter a fila zero no caixa era constante”. Hoje, aos 22 anos, ela estuda Publicidade e estagia na área.
‘Precisei tomar remédios para ansiedade e depressão. Fiquei afastada por 14 dias e quando voltei minha chefe já estava me pressionando para pedir demissão’
O percentual de mulheres trabalhadoras do setor de serviço passou de 54,8% entre janeiro e agosto de 2023 para 61,5% no mesmo período deste ano, segundo dados compilados pela FGV (Fundação Getúlio Vargas). O total de vendedores e prestadores de serviços do comércio dobrou, passando de 25,1% para 50,1% nos meses analisados.
Na mesma linha, a participação de mulheres em trabalhos que demandam atendimento ao público aumentou, passando de 58,6% para 81,9%
“A escala 6X1 acaba perpetuando um ciclo de exploração que leva ao esgotamento físico e emocional. Com um único descanso semanal, o trabalhador tem um constante desgaste e adoecimento”, diz Samara Serena, psicóloga do projeto Canto Baobá, que prevê democratizar o acesso à saúde mental.
‘Não tinha tempo para nada’
De Osasco, na região metropolitana de São Paulo, Gabriela Cardoso, 28, trabalhou por quase 4 anos em uma farmácia. A jovem conta que começou aos 18 anos como caixa e foi promovida até virar atendente de balcão para medicamentos. “Toda lembrança que tenho desta época, é de estar trabalhando. Via minha família se organizando para ir para praia e eu não podia ir”.
Hoje analista financeira em uma empresa de Saúde, Gabriela deixou a escala 6X1 para preservar sua saúde física e emocional.
‘Estava no auge do meu estresse e foi decisivo entender que eu precisava estar mais próxima da minha família e também me qualificar e fazer uma faculdade. Naquela rotina não teria tempo. Merecemos mais dignidade
Os atendimentos médicos de mulheres com queixas de transtornos mentais relacionados a trabalho aumentaram 54% entre 2022 e 2023. No ano passado foram registrados no SUS (Sistema Único de Saúde) 3.567 procedimentos ambulatoriais relacionados à queixa (2.579 em mulheres). Em 2022 haviam sido 2.535 procedimentos totais, sendo 1.655 para mulheres. Os dados são do Ministério da Saúde compilados pela Folha de S. Paulo.
“Era um desgaste não só psicológico. Você tinha que estar ali para ganhar um salário mínimo que não dava para investir em um lazer ou em um curso”, relata a hoje profissional de marketing Amanda Guimarães, 23, do Jardim Ângela, na zona sul. Ela trabalhou por seis meses em um shopping aos 18 anos. “Não conseguia investir em uma atividade física porque estava sempre muito cansada e me sentia culpada”.
A exaustão e o sentimento de desânimo relatados pelas mulheres ouvidas na reportagem não são casos isolados.
“A desesperança é um sentimento muito comum entre essas trabalhadoras, porque acaba sendo um lugar de solidão e sem rede de apoio”, diz a psicóloga Samara. “Mulheres negras e periféricas comumente enfrentam jornadas duplas, e até triplas, com trabalho formal e cuidados da casa e da família. É uma sobrecarga que resulta em ansiedade, dores físicas, e exaustão emocional”.
*Nome real alterado a pedido da fonte.
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