Do artesanato à luta por direitos: as conquistas das mulheres quilombolas da Serra das Viúvas
“Na década de noventa ninguém sabia o que era ser quilombola, tínhamos aqui as pessoas pretas com seus costumes, com sua cultura, mas ninguém imaginava o que era ser quilombola e foi graças a união das mulheres que nós demos entrada no processo de autoidentificação e conseguimos ser reconhecidos como uma comunidade quilombola”. Enquanto escuta o depoimento de Maria Helena Menezes sobre a história do quilombo Serra das Viúvas, a matriarca da comunidade, Marlene de Araújo, não contém as lágrimas. Aos 61 anos, a líder quilombola conta que “passa um filme na cabeça de toda a luta que a gente viveu”.
Maria Helena e Marlene são partes de uma mesma história, uma história que elas lutam para dar continuidade e ainda buscam por algumas respostas sobre a origem. Moradoras da Serra das Viúvas, localizada no município de Água Branca, no Alto Sertão de Alagoas, as descendentes quilombolas lideram e coordenam a Associação das Mulheres Artesãs e Quilombolas do Quilombo da Serra das Viúvas (AMAQUI).
A trajetória da AMAQUI é a continuação da memória do próprio quilombo e de suas conquistas. A história de formação da comunidade quilombola da Serra das Viúvas foi construída a partir de duas hipóteses. A primeira é que pessoas escravizadas se instalaram ali após fugirem das terras do Barão de Água Branca. Já a segunda é que as pessoas que ali se instalaram firmaram um compromisso de produzir e pagar ao Barão uma cota de uso da terra.
Já o nome da comunidade é uma referência a três famílias que ocuparam a região há séculos. Como contam os mais velhos, as viúvas são as mulheres ancestrais dessas três famílias fundadoras da comunidade que perderam seus maridos e ali permaneceram, criando seus filhos sozinhas.
“Infelizmente nós ainda não temos a confirmação da história da comunidade, não sabemos se essas famílias eram de pessoas escravizadas que aqui se refugiaram, e também não sabemos em que ano exatamente essas famílias chegaram aqui”, lamenta Maria Helena Menezes de Souza, doutora em Linguística e tesoureira da AMAQUI.
“Foi uma luta pra gente conseguir se aceitar como quilombolas, muita gente não entendia, só sabiam o que era ser descendente de escravo e isso ninguém queria ser. Só depois é que as pessoas foram entendendo melhor”, completa Marlene de Araújo.
Atualmente, o Quilombo da Serra das Viúvas conta com cerca de 250 habitantes e 90 famílias. Em visita a comunidade, foi possível perceber como a população reconhece a importância da cultura quilombola e se orgulha de fazer parte dela, tendo o artesanato e a agricultura como tecnologias ancestrais de grande valor. Graças a articulação das mulheres da AMAQUI, hoje o quilombo possui a sede da associação, uma casa de farinha e uma igreja, construções que só foram possíveis com o trabalho das artesãs.
“Os homens podem até contribuir, mas o trabalho pesado mesmo é das mulheres e são elas que fazem tudo isso acontecer, com muito esforço”, conta Maria Helena.
Reconhecimento da identidade quilombola a partir da cultura do artesanato
Através do trabalho como artesãs e agricultoras, as mulheres do quilombo são responsáveis por gerir boa parte da renda da comunidade. E foi graças à organização destas mulheres a partir do artesanato que a população da Serra das Viúvas se reconheceu e se fortaleceu enquanto quilombo.
A confecção de artesanatos a partir de materiais como palha de licuri, cipós e fibras de bananeira foi, até meados dos anos 1990, a principal fonte de sustento da comunidade. Bolsas, chapéus, vassouras, cestas e outros itens eram vendidos em feiras locais, garantindo a subsistência das famílias. Foi nessa época que surgiu um pequeno grupo de mulheres artesãs, que em 1998 e 1999 firmaram uma parceria com o SEBRAE. Através de cursos e oficinas, o grupo diversificou seus produtos e expandiu suas possibilidades no mercado.
Um grande marco dessa parceria aconteceu no ano 2000, quando o grupo de artesãs recebeu o convite para decorar as celebrações do Dia de Zumbi no Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, em Alagoas – há exatos 25 anos deste 20 de novembro. Com a demanda crescente, outras mulheres da comunidade foram convidadas para fazer parte do trabalho. Com isso, a organização ganhou força e as artesãs realizaram algumas parcerias com designers, o que possibilitou o desenvolvimento de outros produtos artesanais.
Enquanto o grupo de artesãs crescia, a identidade quilombola da comunidade se fortalecia. Em 2009, o reconhecimento oficial como quilombo chegou com a certificação da Fundação Palmares. No ano seguinte, as mulheres fundaram a Associação das Mulheres Artesãs e Quilombolas do Quilombo da Serra das Viúvas (AMAQUI), que hoje reúne cerca de 45 associadas com idades entre 18 e 65 anos. Hoje, a associação celebra 25 anos como principal força mobilizadora da Serra das Viúvas.
Antes da construção da sede, as reuniões e os trabalhos aconteciam na casa de farinha, embaixo dos pés de árvore. Em 2018, conseguiram a doação de materiais para a construção da sede, que era um sonho coletivo. Na sede são realizadas oficinas, reuniões, ensaios, cursos e é também onde funciona a creche municipal da comunidade.
Com o reconhecimento e a titulação como território quilombola, as mulheres da AMAQUI avançaram em outras conquistas para a comunidade e buscaram políticas públicas para fortalecer a prática da agricultura. Com isso, as mulheres alcançaram um grande feito: o quilombo foi contemplado com o Programa Cisternas e atualmente todas as casas possuem a tecnologia de reservatório de água.
“Isso foi uma grande bênção porque antes a gente sofria muito sem água aqui, tínhamos que caminhar bem muito para pegar água e carregar nos potes, que muitas vezes quebravam no caminho”, conta a líder quilombola Marlene de Araújo.
Graças a história de resistência e conquistas, a AMAQUI foi uma das iniciativas escolhidas para integrar o X Encontro Nacional da Articulação Semiárido (EnconASA), que acontece entre os dias 18 e 22 de novembro nos estados de Sergipe e Alagoas. Em visita ao quilombo, parte dos agricultores e lideranças camponesas que participam do evento puderam conhecer as técnicas de artesanato, de agricultura e também a casa de farinha da comunidade da Serra das Viúvas. Os integrantes do grupo também trocaram experiências e saberes sobre a agricultura familiar em uma roda de diálogos.