Grupo de rock negro leva Candomblé e ancestralidade para letras
Imagine uma banda de rock and roll. Que imagem te vem à cabeça? Se você não associou essa cena com a cultura negra, talvez não conheça uma parte importante da história de um dos estilos de música mais populares do mundo.
Idealizado nas igrejas estadunidenses na década de 1920, o gênero teve influências diretas do blues e do jazz, estilos criados e popularizados por pessoas pretas. A primeira canção considerada rock’n roll, inclusive, é de uma mulher preta: Rosetta Tharpe, uma cristã que, em 1937, lançou a letra gospel ‘Strange Things Happening Every Day’.
De lá para cá, o estilo passou a ser associado também a posturas e comportamentos rebeldes, de questionamento e não aceitação de desigualdades e opressões – inclusive a dos padrões estéticos brancos, embora essas críticas não tenham se popularizado em uma sociedade com padrões burgueses e racistas.
Mas esse é justamente o propósito do grupo de rock paulistano Ki’mbanda: tomar de volta a ancestralidade e as origens pretas do rock. Formado pelos paulistas, KRISX (vocalista), Rogério Menudo (baixista), Yves Remonte (guitarrista), Igor Mamute (baterista), Anderson Kafe e Marcus Guaruja (percussionistas), o grupo mistura em suas músicas elementos do Candomblé, Umbanda e Afrofuturismo.
“Ouvir um som da Ki’mbanda, é como ver e ouvir histórias sobre as matrizes africanas. É um som que se associa à religiosidade, ao misticismo e ao sobrenatural, mas também fala sobre o dia a dia. É a visão de um homem preto do século 21, que muitas vezes não tem tempo para ficar revisitando as ideias de seus antepassados, pois está tentando sobreviver”, desabafando KRISX.
Nascido em Mauá, cidade do ABC paulista, o músico e vocalista da Ki’mbanda é um engajado militante em questões sociais e raciais e enxerga na música um caminho para expor o que defende.
“A Ki’mbanda é a minha principal arma, pois é através dela que expresso a minha arte. Como um Ori, tenho por dever e vocação transformar a minha arte num enfrentamento contra o racismo”.
Em 20 de novembro, nova faixa
No Dia da Consciência Negra (20/11), o Ki’mbanda vai lançar um novo single: “Sankofa”, que destaca a força da mulher preta brasileira. Para eles, a data é a que melhor representa a essência do grupo.
“O objetivo é deixar registrado neste dia tão importante o nascimento de uma música que fala sobre a luta, de mães, tias, avós, irmãs pretas… Queremos que essas mulheres que lutam se reconheçam na letra”.
Marcado por riffs de guitarra intensos e vocais carregados de emoção, o nome da música, “Sankofa”, é composto pelas palavras “san” (voltar, retornar), “ko” (ir) e “fa” (olhar, buscar e pegar), que remete ao passado, presente e futuro dessas mulheres.
A faixa reflete a maturidade musical do grupo abordando questões sociais muito complexas, enquanto propõe uma simplicidade melódica que aproxima a música dos ouvintes.
Início da Ki’mbanda
Em 2019, KRISX conheceu o guitarrista Yves Remonte e juntos decidiram montar uma banda cover do Living Color, grupo de rock estadunidense que também é formado por pessoas pretas, que fez sucesso no final dos anos 1980.
A ideia era tocar as músicas da banda em um festival, que acabou sendo cancelado. No entanto, a conexão entre os amigos rendeu o desejo de criar um repertório próprio, embora ainda focado em covers. Eles conheceram o baterista Demma Drummer — que hoje não está mais no grupo —, e avançaram na ideia.
A primeira referência do grupo foi Baden Powell, renomado violonista brasileiro que possuía um som característico do Afro Samba. A intenção era mesclar o samba de com uma onda mais rock n’ Roll.
“Decidimos fazer um cover diferenciado da música ‘Canto de Ossanha’, que o Powell compôs na década de 1960 com o Vinicius de Moraes. Colocamos a nossa identidade, com elementos da diáspora, e disso saiu uma linda versão”.
A partir daí, os amigos colocaram a criatividade para funcionar e mergulharam em influências pretas, deixando marcado o estilo que queriam seguir.
Em 2020, porém, a pandemia do Covid-19 impôs uma pausa nos trabalhos da banda, mas também aqueceu a ideia de ter uma produção autoral, cada vez mais distante dos covers.
E assim foi: quando as medidas sanitárias foram flexibilizadas, eles concordaram em criar uma banda de rock autoral, usando temas do Afro Samba com elementos de diáspora. Nesse movimento, compuseram sua primeira letra: ‘Hit your Head’.
E se a ideia é fortalecer os elementos afros no rock, não demorou para somarem mais percussão às músicas, para marcar ainda mais a essência negra das produções. Foi aí que chegou a banda o percussionista Anderson Kafe.
“A escolha [do nome] Ki’mbanda foi pelo impacto da palavra. O ‘Ki’ vem do youruba, que representa força e cura, enquanto que o Mbanda representa aquilo que movimenta um grupo”.
Tanto que uma das principais molas propulsoras da banda foram assassinatos racistas ocorridos em 2020, como o de George Floyd, nos Estados Unidos, e o de João Alberto Silveira Freitas, em Porto Alegre.
“Eu precisava me movimentar por causa dessas tragédias. Eu percebi o início de um levante da cultura preta e isso me evidenciou a necessidade de um enfrentamento”.
Candomblé e Umbanda
Com a Ki´Mbanda, KRISX conseguiu realizar dois desejos: ressignificar sua história como pessoa preta no rock e resgatar a essência preta do gênero.
“Escuto rock desde sempre, mas o racismo estrutural fazia com que eu não me reconhecesse no gênero. Sabe o que significava uma criança preta e periférica curtir rock nos anos [19]90? Eu não me reconhecia em nada. Então quando eu canto rock e vejo outras pretas cantando junto, fico feliz. É uma vitória”.
O grupo engatou os primeiros shows profissionais em 2021, quando se apresentaram no Centro de Culturas Negras Mãe Sylvia de Oxalá, no Jabaquara, zona sul de São Paulo.
Para KRISX as apresentações são como um xirê, nome dado às cantigas de Candomblé em uma festa para os Orixás. Já as letras são como cantigas que celebram as entidades e religiões de matriz africana.
“São incorporações, como se fosse uma pessoa preta falando. Buscamos falar sobre o que essa pessoa passa durante a vida, reforçando que ela não está sozinha e trazendo incentivos de aquilombamento, de resistência”.
Ao mesmo tempo que buscam elementos ancestrais da cultura negra, o grupo também flerta com o Afrofuturismo
“Eu vejo a ancestralidade como um agradecimento a aqueles que vieram antes de mim. Uma geração carregou a dor, para que a outra não sofresse. Somos a geração que deve reverência a um legado de dores e eu os reverencio em minhas músicas. Estamos longe de superar, mas aos poucos estamos construindo um futuro”.
Agência MuralO post Grupo de rock negro leva Candomblé e ancestralidade para letras apareceu primeiro em Agência Mural.