Operação Contragolpe: Ministro da Defesa não explica papel dos generais
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O plano de golpe contra a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva foi uma tentativa de insurreição militar gestada por militares contra civis, mas que também não hesitou em apontar o dedo para alguns de seus próprios comandantes militares. Isso está claro nas gravações em áudio trocadas entre o coronel Reginaldo Vieira de Abreu, chefe de gabinete do general da reserva Mário Fernandes, número dois da Secretaria-Geral da Presidência no governo de Jair Bolsonaro, e o seu chefe.
Os áudios sugerem que parte dos 16 generais que compõem o Alto Comando do Exército resistia a virar a mesa (“cinco não querem, três querem muito e os outros, na zona de conforto”). Vieira chegou à seguinte conclusão: “A lição que a gente deu para a esquerda é que o Alto Comando tem que acabar”. Ao que tudo indica, o golpe só seria consumado se houvesse uma decisão unânime no Alto Comando. Na opinião do coronel, para dar um drible nessa dificuldade bastaria alterar os critérios de promoção dos generais. “Aí acaba essa palhaçada de unanimidade.”
Mesmo sabendo de uma certa resistência no Alto Comando, os conspiradores insistiam em quebrar a hierarquia e a disciplina a fim de colocar os generais do colegiado contra a parede. O general Fernandes enviou um áudio ao então ministro da Secretaria, o general Luiz Eduardo Ramos: “O senhor tem que dar uma forçada de barra com o Alto Comando, cara. Com o general Freire Gomes [então comandante do Exército], com o general Paulo Sérgio [então ministro da Defesa], porra”.
Assim, desde a semana passada sabemos, pelos diálogos interceptados ou recuperados pela Polícia Federal (PF), que pelo menos uma parte do Alto Comando estava disposta a desencadear um golpe de Estado e que o colegiado pode ter sido objeto de pressões e conversas nessa direção. Ficamos sabendo, segundo o relatório da PF, que um grupo de altos oficiais, incluindo o comandante da Marinha Almir Garnier Santos e o então ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, “agiram para influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação por meio do endosso de ações e medidas a serem adotadas para consumação do golpe de Estado”.
A PF e o Supremo Tribunal Federal (STF) estão fazendo seu trabalho para esclarecer, em toda a sua dimensão, a trama golpista. Falta, contudo, um ator nessa equação: o Ministério da Defesa.
É assombroso verificar que, se três generais eram favoráveis ao golpe e oito permaneciam em dúvida, uma ampla maioria de 11, dos 16 generais do Alto Comando, ou trabalhavam para rasgar a Constituição ou eram, no mínimo, condescendentes com esse tipo de conversa. Onze, no mínimo, delinquentes que poderiam arrastar o país a um banho de sangue pela ação e pela inação.
Numa democracia fortalecida, sem medo, esses 11 seriam identificados pelo próprio Ministério da Defesa e punidos de forma exemplar, sem prejuízo dos desdobramentos nos campos judicial e criminal.
O ministério, contudo, resolveu adotar a estratégia de avestruz. A mais recente nota oficial do órgão é de 6 de setembro, dois meses antes da deflagração da Operação Contragolpe. O ministério que manifestou pesar pela morte de um ex-comandante da Marinha não tem nada a dizer até agora sobre a mais grave crise militar vivida pelo Brasil desde a redemocratização, em 1985.
O último pronunciamento oficial do ministro da Defesa José Múcio foi divulgado em 10 de junho pela passagem do aniversário de 25 anos do Ministério da Defesa. É um dado irônico, pois o ministério foi criado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso justamente como uma forma de melhorar o controle civil sobre os militares.
A ideia foi, desde o começo, instalar uma governança mínima civil sobre os comandantes militares. Ao longo de quase 19 anos, de 1999 a 2018, aos trancos e barrancos, bem ou mal, o Ministério da Defesa foi ocupado sempre por civis, num total de dez, de advogados (como Nelson Jobim) a diplomatas (como Celso Amorim). O ponto de virada veio no governo de Michel Temer (2016-2018), que pela primeira vez nomeou um militar para o cargo, o general Joaquim Silva e Luna. Foi o início de um processo de ampla militarização do governo federal.
Nos bastidores, os militares costumavam reclamar dos nomes civis escolhidos para a Defesa. Uma notável exceção foi o do ex-comunista Aldo Rebelo, tornado ministro em 2015 pela presidente Dilma Rousseff. Quem conversasse, na época, com altos oficiais das Forças Armadas só ouvia elogios a Rebelo.
O tempo passou e hoje Rebelo propaga um suposto “Quinto Movimento”, no qual desfila teorias conspiratórias sobre a Amazônia e demoniza organizações não governamentais, ambientalistas e jornalistas. Caiu nas graças da extrema direita, dos garimpeiros, dos agronegociantes e do próprio Jair Bolsonaro. Agora dá para entender bem por qual motivo Rebelo era tão elogiado pelos militares.
O caso Rebelo demonstra que, se a ideia da criação do Ministério da Defesa era melhorar o controle civil sobre os militares, de nada adianta nomear para o cargo um civil que alimenta e dissemina todo o ideário militar. É como nomear um militar sem farda. Se o civil é apenas um boneco de ventríloquo dos interesses militares, a própria existência de um Ministério da Defesa é desperdício de energia, tempo e dinheiro.
Não se espera que um ministro da Defesa tenha uma posição antagônica aos militares – não é razoável imaginar um ministro sem diálogo com o próprio setor que deve comandar. Mas o exagero oposto é igualmente deletério para o futuro do país.
A omissão em momento crucial como esta Operação Contragolpe é um sinal preocupante sobre o real compromisso da Defesa com a estabilidade política do país e a sua verdadeira intenção de revirar as entranhas dos setores das Forças Armadas, de alto a baixo, politizados e radicalizados. A gravidade das evidências trazidas à tona pela PF é um desses típicos casos nos quais quem cala, consente.
Na semana passada, José Múcio apareceu na mídia apenas vestindo o figurino de “observador político”, como se não exercesse um cargo de alta responsabilidade sobre os órgãos militares. À Folha de S.Paulo, comentou desejar que “tudo seja esclarecido para tirar de cima das Forças Armadas a névoa da suspeição”. Ele quer separar “os CPFs [pessoa física] do CNPJ [jurídica]”.
São declarações que carecem de lógica. Nada menos que 25 das 37 pessoas indiciadas pela PF são militares, 12 das quais ainda na ativa. E muitas não são figuras laterais: uma foi o ex-ministro da Defesa, outra, comandante da Marinha, duas exerceram cargo de ministro, uma foi presidente da República com amplo apoio da cúpula militar. As instituições, não custa lembrar, são feitas por pessoas, não existem no vácuo. Não parece ser muito fácil afastar a névoa da suspeição sobre um setor que tem 25 pessoas implicadas numa conspiração contra a democracia.
Ao Correio Braziliense, Múcio procurou minimizar o papel do seu ministério no escândalo. Ele argumentou que “quem abre os inquéritos e pesquisa sobre quem é culpado ou inocente é a Polícia Federal. Nós só ficávamos sabendo das operações da PF no dia em que foram deflagradas”.
O que Múcio sistematicamente deixa de lado é que seu ministério tem uma dimensão política que extrapola bastante uma investigação policial. Nisso se inclui a necessidade banal, mas não cumprida, de condenar o plano golpista em público, de forma oficial, ampla, clara e determinada.
Se a Defesa não o faz, as três Forças podem se sentir autorizadas a também nada dizer à sociedade civil. A omissão dá asas a outros tipos de suspeições. Pode-se perguntar, por exemplo, até que ponto, enquanto instituição determinante para a estabilidade democrática, a Defesa flerta com algumas linhas gerais dos golpistas de 2022. Por exemplo: o antipetismo, a vontade de exercer um “Poder Moderador” e a fake news sobre “fraude eleitoral”.
Há outros sinais bastante ambíguos. Conforme escrevi nesta coluna em novembro do ano passado, em 2023 Múcio editou e fez publicar uma portaria sobre a “Política de Inteligência de Defesa” que, na prática, mantém a ideia de tutelar a democracia. Esse documento tem um cheiro de naftalina dos tempos da ditadura militar. Redigida de forma vaga e imprecisa em vários pontos, pode ser apreciada com alegria até pelos bolsonaristas golpistas do 8 de Janeiro. Na essência, abre espaço para a atuação das Forças Armadas contra os próprios brasileiros.
Em 8 de outubro, durante palestra para o poderoso grupo de lobby chamado Confederação Nacional da Indústria (CNI), Múcio alegou que indígenas manifestam “questões ideológicas” que estariam atrapalhando a extração de potássio no país. Colocou o Ministério da Defesa no papel de vítima, na base do todo mundo contra mim, ao dizer que “a gente vive se defendendo da sociedade, da imprensa, dos políticos, dos governos”. É um discurso perigoso, que busca estabelecer uma divisão entre sociedade civil e militares. Caberia bem na boca de Jair Bolsonaro.
A fala sobre os indígenas indignou o jornalista Janio de Freitas, que declarou ao programa Três Pontos: “Não são motivos ideológicos que fazem a minoria defender a vida, defender a sobrevivência do que ainda resta de indígenas depois do genocídio que se pratica desde 1500 e continua se praticando contra os indígenas neste país. É uma questão humanitária, uma questão de caráter, moral, não é uma questão ideológica”.
Múcio é conhecido em Brasília por ser simpático e acessível a muitos jornalistas. Em textos na imprensa, podem ser encontrados elogios como tarimbado, bem-humorado, resiliente, suave, flor rara. Ele de fato parece ser um show de comunicação. Isso ajuda a explicar como, nesse turbilhão da Operação Contragolpe, ele passa incólume como se fosse um passageiro de trem admirando a paisagem.