Neste ano, a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) celebra 25 anos de sua criação. A organização mudou a paisagem e a economia da região com projetos e iniciativas que melhoraram a qualidade de vida de milhares de famílias agricultoras nos nove estados do Nordeste e norte de Minas Gerais.
A ASA se tornou referência mundial na luta por direitos sociais e pela segurança alimentar com o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), que ultrapassou a meta de cisternas construídas e viabilizou o acesso à água potável por meio da construção de cisternas de placas de cimento que armazenam a água da chuva.
Em seu X Encontro Nacional, realizado no final de novembro em Piranhas, Alagoas e Canindé de São Francisco, Sergipe, a ASA homenageou o teólogo, assistente social e ativista baiano Naidison de Quintella Baptista, um dos fundadores e coordenadores da articulação e um dos líderes do P1MC. Acompanhando o encontro que reuniu mais de 600 agricultores, agricultoras e lideranças camponesas, a MZ entrevistou Naidison e ouviu sua análise sobre o legado da ASA e os futuros desafios do semiárido.
***
Marco Zero – Em que momento você se encontrou com o semiárido e entendeu a importância de incidir sobre aquela região?
Naidison Baptista – Eu me encontrei com o Semiárido a partir de minha esposa. Minha esposa é de Riachão do Jacuípe, ela é do pleno Semiárido. Quando a gente resolveu caminhar juntos, nós fomos muitas vezes à região de Riachão e ali eu tomei um banho de Semiárido, porque eu vinha do Recôncavo, o Recôncavo tinha muita água, tinha rios correntes, tinha plantios constantes, tinha gado tranquilo e eu me deparei com uma região com pouca água, com seca, com dificuldade de vida, mas com um povo muito gostoso de viver e lidar.
Como surgiu o Movimento de Organização Comunitária (MOC) e como você passou a integrá-lo?
O MOC foi criado por um irmão de Francisca, minha esposa, e eu não atuava no MOC, eu atuava na universidade em Salvador, quando nos casamos, atuava na Igreja Católica de Salvador, depois por desentendimentos de concepções com a Igreja, eu saí desse espaço, fui para a prefeitura de Camaçari para trabalhar como assistente social. Daí, fui convidado para lecionar na Universidade Estadual de Feira de Santana, que estava se implementando. Fui para a Feira de Santana, inicialmente dando aulas, mas residindo em Salvador. Depois, me mudei para a Feira de Santana com toda minha família. E aí eu, vamos dizer, conheci o MOC mais de perto, eu conhecia de leitura, de conversa, conheci mais de perto e fui convidado para fazer umas assessorias e, das assessorias, fiquei até hoje.
Qual é a relação da história do MOC com a ASA?
Inicialmente, eu acho que a gente tem que ressaltar que o MOC, embora não falasse de convivência com o Semiárido, sempre buscou criar condições ou criar oportunidades de condições para que as pessoas do Semiárido vivessem melhor. Então, no MOC já tinha cisternas, no MOC tinha fundo rotativo, no MOC tinha assistência técnica, no MOC tinha um conjunto de ações, que eu hoje digo que são ações de convivência com o semiárido, mas que não se denominavam assim. E o MOC sempre esteve na base da maioria dos documentos que foram entregues às autoridades buscando condições de vida para a população do Semiárido, que na época não era Semiárido, era Nordeste ou polígono das secas. Então, foi sempre o DNA do MOC buscar essa perspectiva.
Quando acontece a COP3 da desertificação no Recife, o MOC foi uma das organizações que foi para lá na perspectiva de fazer uma conferência paralela. Então, fizemos a conferência paralela, não tivemos entrada na conferência oficial, construímos uma cisterna conjuntamente com outras 60 organizações, denunciamos a grande destruição que havia na região naquela época, com mortes, centenas e centenas de mortes, e daí anunciamos o que a gente avaliava que era o caminho para o Nordeste, que era a convivência com o semiárido.
Então, em 1999, os caminhos entre o MOC e a ASA se encontram nessas declarações, com a própria criação da ASA e depois na criação da P1MC, que foi algo muito polêmico, muito debatido, que dividiu os participantes em grupos antagônicos, mas que depois chegamos à conclusão que, sem uma entidade jurídica, não caminharíamos na implementação de políticas e na proposição de políticas.
E o que seria a convivência com o semiárido?
Para explicar a convivência com o semiárido, eu sempre repito uma expressão de Haroldo Schistek, que foi o fundador do IRPAA [Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada]. Haroldo dizia que conviver com o semiárido é ter a capacidade de perguntar e ouvir da natureza, dos animais, do ambiente, das pessoas, como se pode viver bem ali. Então, quando nós temos essa capacidade de ouvir, a gente vai descobrindo estratégias para expressar isso que a gente ouviu.
Por exemplo, as pessoas avaliavam que era importante para a convivência com o Semiárido armazenar água. Então, nós investimos na perspectiva das cisternas de consumo, depois das cisternas de produção, das cisternas escolares e outros espaços. Hoje se discute no armazenamento da água do cuidado para a casa, no armazenamento da água para a produção. As pessoas discutiam a importância da semente crioula. Então, nós entramos na perspectiva de criar os bancos de sementes, de assessorar as organizações para criar os bancos de sementes. As pessoas discutem e expressam sua vontade de ter uma economia solidária e justa. A ASA entra nessa perspectiva, na perspectiva da educação contextualizada.
Eu diria que conviver é você respeitar a população e a natureza do lugar, buscando formas de viver bem ali. Então, conviver é relacionar-se com os povos, com a natureza, com o ambiente, com tudo que há ao nosso redor, buscando criar formas de não matar, de não discriminar, de acolher, de buscar modos de criar um bem viver.
E a convivência com o semiárido implica nisso e implica também em valorizar as mulheres, valorizar os jovens, valorizar os LGBTs, valorizar todas as manifestações culturais e de opções das pessoas, que não são contrárias, são confluentes na construção de uma perspectiva de convivência. E é nesse caminho que a gente vai. Eu acho que o segredo da ASA é nunca ter abandonado esse caminho. Esse caminho é a nossa luz, o nosso farol.
“O P1MC é a maior experiência de política participativa de democratização da água no mundo”
Qual seria o legado da ASA nesses 25 anos de história?
Eu acho que tem alguns legados. Um legado é ter buscado e descoberto a convivência com o Semiárido na própria convivência com os agricultores e agricultoras, povos e comunidades. Então, não fabricamos no laboratório a convivência, nós bebemos a convivência das comunidades, nós desenvolvemos uma capacidade de formular, de arrumar, de projetar, que tornou talvez a convivência mais palatável.
Eu sempre digo que o povo do Semiárido é tão forte que durante 500 anos muita gente quis exterminá-lo e matá-lo e ele está aí vivo, cantando, festejando. Então, essa é uma linha, a convivência. E essa convivência se manifesta no combate à seca. Porque o combate à seca era o quê? O movimento de uns poucos às custas da morte e da miséria da grande maioria. Então, nós temos secas em que morreram um milhão de pessoas. Hoje, nós falamos que nós temos 1.300.000 famílias com água potável na porta de casa, a convivência faz isso. Nós trabalhamos concepções e narrativas.
Um outro elemento que eu acho que é legado da ASA é o que está se buscando formular hoje um pouco mais. Que é, assim, antes da ASA, nós éramos o polígono da seca. Ou seja, o que era que tinha pra nós? O que tinha pra nós era frente de trabalho, algum resto de comida, doações de caminhões de doações do Sul que expressavam sua bondade com esse processo. Ou seja, éramos marginalizados e pelo assistencialismo éramos fadados a permanecer marginalizados. Então, hoje nós não somos mais o polígono da seca. Nós hoje nos autodenominamos semelhantes com seus povos, sua cultura, sua dança, seu modo de vestir, seu modo de falar, sua multiplicidade, sua diversidade, sua riqueza e sua capacidade de enfrentar e de vencer a realidade.
E um terceiro legado forte que eu avalio que a ASA trouxe nesses 25 anos é que nós mostramos ao mundo que é possível partilhar a água. Que é possível a gente ter um sistema de distribuição de água no Semiárido de modo democrático, participativo e envolvendo todos os sujeitos. As pessoas são sujeitos de direitos, as pessoas não são recebedores de esmola. Então, esse é um legado da ASA, quando nós temos 1,3 milhão de famílias, temos 6 milhões de pessoas com água potável na porta de casa. Pessoas que antes bebiam lama, pessoas que morriam de verminose.
Eu gosto de dizer que a P1MC é a maior experiência de política participativa de democratização da água no mundo. Então, o legado da água para o desenvolvimento do semiárido é inegável. Nega quem não quer ver, mas nós queremos ver e queremos anunciar. E esse legado é possível de ser levado para outros espaços. Ele é possível de ser levado para o Chaco na Argentina, para o Corredor Seco da América Latina, para a África e para vários espaços, não como uma receita, mas como uma perspectiva de construção de vida e hoje também como uma perspectiva de minimizar, ao menos, os efeitos climáticos.
E quais são os desafios que estão postos para o futuro da atuação da ASA?
Têm muitas linhas, mas eu acho que a gente tem que universalizar o acesso à água de consumo humano. Nós ainda temos 350 mil famílias que não têm esse direito respeitado. Nós temos que ampliar muito os implementos de água para produção, os bancos de sementes, os quintais produtivos, etc. Todo conjunto de elementos que a gente trabalha. Agora, se apresentam hoje, eu avalio, alguns desafios muito fortes. Um deles é defender nossos territórios. A ASA tem que criar uma consciência forte do significado e do valor dos seus territórios para defendê-los contra invasões e usurpações que estão acontecendo a cada momento.
A gente passa por uma comunidade e, oito dias depois, a gente passa de novo e já está começando a implantar uma eólica nesta comunidade. E ali a comunidade foi usurpada na sua cisterna, no seu plantio, na sua casa, na sua paz, na sua vida. Então a gente tem que fazer esse debate com os agricultores e agricultoras. Um outro debate que eu acho que tem que ser aberto mais sistematicamente é a dimensão da comunicação enquanto estratégia. Não é enquanto instrumento de visibilizar um projeto, mas é enquanto estratégia de mudança de narrativa. Os nossos inimigos da extrema direita estão ganhando para nós porque eles fazem narrativas terríveis que, inclusive, abocanham o nosso pessoal. Então, nós temos que trabalhar a comunicação como estratégia política de disputa de narrativas e a ASA tem uma história nisso.
” A ASA tem que brigar brigar pela produção de energia renovável descentralizada e democratizada. Se nós fizemos isso com a água, por que a gente não pode fazer com a energia?”
A ASA foi capaz de mudar a narrativa do Semiárido. O Semiárido era chão rachado, agora o Semiárido é produtor de alimentos. O Semiárido era lugar de preguiçoso, agora o Semiárido é lugar de lutador e de pessoas que conquistam politicamente seus espaços. Isso foi a comunicação da ASA que construiu.
Hoje estamos num momento em que, passados oito anos de uma bagaceira grande que a gente viveu, estamos empoderados. Em alguns pontos a gente ainda está fragilizado. Então, nós precisamos reforçar nossas organizações, e reforçar significa capacitá-las politicamente e capacitá-las tecnicamente para o enfrentamento do processo que vai se dar e que vai ser duro.
Agora, ao lado disso, temos tecnologias que aparecem. Nós temos já sendo desenvolvida no Semiárido a tecnologia do saneamento total com reúso da água. Isso é um negócio fantástico. Nós já temos essa proposta, então nós temos que fazer uma incidência para que o governo acate essa proposta e comece a implementar esse processo. O semiárido é totalmente injustiçado no campo do saneamento.
Nós temos as energias renováveis, ditas limpas, mas sujas do sangue e da vida das pessoas. O processo de produção dessas energias no Brasil é totalmente solto e não regulamentado. Então as firmas fazem o que querem, quando querem, do jeito que querem e acabou. E o agricultor solto no espaço não tem condição de reagir a isso. A ASA tem que brigar por uma regulamentação da produção de energia renovável e brigar pela produção de energia renovável descentralizada e democratizada, porque as de hoje são oligarquicamente concentradas. E se nós fizemos isso com a água, por que a gente não pode fazer com a energia? Podemos também.
E por último, nós estamos num momento crucial da vida no planeta, que é o momento das mudanças climáticas. Nós da ASA temos algo fenomenal para apresentar ao governo brasileiro como política conjunta de enfrentamento às mudanças climáticas e apresentar ao mundo como sugestões de estratégias para enfrentamento das mudanças climáticas.
Se a gente pegar todo o conjunto de atividades e ações e estratégias que a gente desenvolve, elas se centram todas na busca da produção de alimentos, na busca de você viabilizar as propriedades das pessoas e na busca de você transformar o que é dito improdutivo em produtivo. Isso nós já provamos que sabemos fazer. Então nós podemos oferecer isso hoje ao mundo.
A Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) marca presença na 16ª Conferência das Partes (COP16) da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (UNCCD), realizada em Riad, Arábia Saudita. O evento, que teve início nesta segunda-feira, 2 de dezembro, reúne representantes de governos, sociedade civil e organizações internacionais de mais de 196 países, além da União Europeia, sob o tema “Nossa Terra. Nosso Futuro”. A delegação da ASA é composta pela agricultora e coordenadora executiva Roselita Vitor, pela assessora de coordenação do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), Juliana Bavuzo, e pelo integrante do Grupo de Trabalho de Combate à Desertificação, Paulo Pedro de Carvalho. O grupo leva à conferência exemplos das práticas sustentáveis adotadas no Semiárido brasileiro, com foco na resiliência climática.
O post “O Semiárido era chão rachado, agora o Semiárido é produtor de alimentos” apareceu primeiro em Marco Zero Conteúdo.
Tags:
acesso à agua | Articulação do Semiárido | ASA Brasil | cisternas | P1MC | socioambiental