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*Texto escrito em coautoria com Thiago Domenici.
Há algumas semanas, o programa Fantástico, da Globo, transmitiu, ao longo de sete minutos, uma importante reportagem sobre as acusações de estupro feitas por centenas de vítimas de Mohamed Al Fayed, fundador da loja de luxo Harrods.
Fayed alvejava jovens atendentes quando fazia visitas às lojas, e elas acabavam caindo em uma rede de abusos sexuais. Embora Fayed tenha morrido no ano passado, explicam as jornalistas, “o escândalo não para de crescer”.
Desde o movimento #MeToo, ouvimos repetidas histórias como essa. Empresários poderosos que usam seu poder, dinheiro e influência para abusar de mulheres, criando, às vezes, redes de exploração sexual que perduram por anos ou décadas.
No entanto, por aqui, um dos maiores escândalos que se enquadram exatamente nesse perfil segue escondido do grande público – a imprensa simplesmente não lhe dá o devido tamanho.
Como a Agência Pública revelou em 2021, Samuel Klein, fundador da Casas Bahia, abusou e explorou durante ao menos três décadas de meninas e mulheres, muitas crianças e adolescentes, montando uma rede que incluía o uso de “aliciadoras” para encontrar seus alvos.
O escândalo é ainda pior porque envolveu o uso da estrutura da rede de varejo mais popular do país e uma das marcas mais reconhecidas – Casas Bahia já figurou entre as marcas “top of mind” nos rankings nacionais.
Segundo investigações da Pública e também do UOL, o “rei do varejo”, como era conhecido, usava o caixa de diferentes lojas para “pagar” suas vítimas pelos pretensos serviços sexuais (vale lembrar que sexo com menores de 14 anos, pela lei, é estupro de vulnerável). A Pública revelou que ele mantinha um quartinho anexo à sala da presidência na sede da empresa em São Caetano do Sul, onde cometia as explorações e abusos, às vezes várias vezes por dia.
Revelamos que automóveis, helicópteros e iates eram usados na engrenagem de exploração sexual. Verificamos que os abusos começaram nos anos 1980 e vitimaram centenas de meninas e mulheres. Trata-se do uso da estrutura de uma das mais importantes empresas brasileiras para crimes sexuais. Por isso, está claro que esse não é apenas um escândalo sexual – é um escândalo empresarial.
A Casas Bahia foi tão implicada nessa rede de exploração que, em 2021, época da publicação das primeiras reportagens, o Ministério Público do Trabalho de São Bernardo do Campo abriu um inquérito civil para apurar possíveis responsabilidades da empresa. Em 2023, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que ampliou de três para 20 anos o prazo para ações reparatórias sobre crimes sexuais contra crianças e adolescentes. A proposta da deputada Sâmia Bomfim (PSOL), inspirada nas investigações da Pública, ganhou a alcunha de PL Caso Klein.
Tudo isso aconteceu sem que o caso tenha recebido grande atenção da imprensa e canais de TV – ao mesmo tempo que dedicam grande energia às brigas pela herança de Samuel Klein e às investigações sobre crimes cometidos pelo filho Saul, que, como bem explica a assessoria de imprensa da Casas Bahia, “jamais teve nenhum vínculo com a empresa”.
Sobre o fundador, a Casas Bahia diz “que não possui qualquer relação com os fatos mencionados na reportagem” e que “as informações da publicação referem-se ao período anterior a 2010, quando a empresa ainda era controlada pela família Klein”.
À época das primeiras publicações, apenas jornais digitais, tais como o Poder 360, republicaram e repercutiram a história.
A frustração sobre a falta de repercussão da imprensa não se limitou aos jornalistas da Pública. A então ombudsman da Folha de S.Paulo Flavia Lima questionou o jornal sobre o fato, na brilhante coluna “Sobre crimes sexuais invisíveis”, ainda em 2021. “A despeito de grande circulação em redes sociais, repercussão em veículos como Nexo, El País e revistas como Marie Claire e Claudia, além de artigos de opinião publicados (todos escritos por mulheres, segundo Domenici), grandes veículos ignoraram a história. Ao contrário do que costuma acontecer em casos dessa dimensão, a grande imprensa não investigou, não repercutiu nem republicou o material.”
Depois da coluna da ombudsman, o jornal escreveu sobre o tema no jornal impresso e fez um episódio do podcast Café da Manhã sobre o tema. Depois, o assunto morreu.
Não é função de nenhum editor de jornalismo questionar as decisões editoriais de outros veículos. A liberdade de imprensa é o sustentáculo da democracia e da pluralidade que ela exige. Entretanto, não temos como deixar de questionar por que um verdadeiro “Caso Jeffrey Epstein” brasileiro segue passando incólume por aqui. Por que em casos internacionais a imprensa repercute a história, mas ignora o caso nacional?
Se antes não havia “gancho”, ou seja, um fato corrente que merecesse dedicar repórteres para apuração própria, já não é o caso. Desde o começo de novembro, a Pública veicula de forma independente a primeira temporada de um podcast em quatro episódios que conta com detalhes os crimes de Samuel Klein. Entrevistamos mais de 60 pessoas e revisamos mais de 5 mil páginas de processos judiciais. Por um mês seguido, a série Caso K – A história oculta do fundador da Casas Bahia está nos Top 5 dos podcasts mais ouvidos no Spotify.
Ou seja, o público brasileiro quer, sim, saber mais sobre essa operação criminosa. É trabalho da imprensa fazer com que um crime dessa magnitude seja tornado exemplar para que não volte a ocorrer.
Neste momento, dezenas ou até centenas de vítimas seguem sem nenhum apoio do Estado ou nenhuma compensação pelos traumas vividos. Elas continuam sozinhas. Nem Samuel Klein, que faleceu em 2014, nem todos os demais cúmplices tiveram que responder pelos crimes. Nem a Casas Bahia foi forçada a se posicionar em relação a esse abuso de poder econômico realizado dentro de sua sede ao longo de décadas.
Você não viu longas reportagens buscando explicar como a rede varejista mais querida dos brasileiros foi usada durante tanto tempo dessa maneira ou quais seriam as autoridades que deixaram de cumprir o seu dever.
Quem eram os seguranças e motoristas? Quem eram os advogados que tentaram silenciar essas mulheres? As implicações econômicas e contábeis, também, deveriam merecer espaço nos jornais de negócios. Como a empresa mascarava esses pagamentos retirados na boca do caixa? Houve contadores que ajudaram a encobrir essa rede criminosa?
São todas perguntas para as quais o jornalismo deveria buscar respostas. Por que não estamos respondendo, como imprensa? Por que estamos deixando de cumprir nosso papel?
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