Fábio Comparato e a herança escravizadora do Rei do Café
A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center
“Não é possível que alguém tenha mais direito do que o outro. O brasileiro tem uma mentalidade racista, que precisa ser combatida.” Quem afirma é o jurista Fábio Konder Comparato, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), hoje integrante da Comissão Arns, organização da sociedade civil que atua na defesa dos direitos humanos. “O vício da desigualdade no país atinge sobretudo os negros. Os brancos possuem um rendimento 40% maior do que eles. É uma inferioridade evidente ainda hoje quanto à educação, emprego, saúde”, conclui.
Curiosamente, Comparato descende do comendador Joaquim José de Souza Breves (1804-1889), um dos maiores proprietários de escravos do Brasil Império, conhecido também como o Rei do Café.
Segundo o historiador Thiago Campos Pessoa Lourenço, em sua tese O império dos Souza Breves nos Oitocentos, a família era dona de 20 fazendas, onde plantava majoritariamente café, e de mais de 6 mil pessoas escravizadas. Em 1860, 1,5% do volume de grãos de café exportado pelo Império era produzido nas fazendas da família. Próximo do imperador d. Pedro I, o fazendeiro adquiriu a insígnia de Comendador da Ordem da Rosa, um dos vários títulos honoríficos da Coroa naquela época.
Diziam que era possível ir de Minas Gerais até o oceano Atlântico passando pelas terras do comendador Breves, que se estendiam pelos atuais municípios fluminenses de Mangaratiba, Resende, Barra Mansa e Rio Claro e pelos municípios paulistas de Bananal e Areias. Apesar disso, sua fortuna não resistiu à abolição da escravatura, em 1888.
O jurista soube do parentesco através de sua mãe, Maria Sulamita Konder Comparato, de ascendência alemã, que se casou com seu pai, Antonio Comparato, imigrante italiano vindo da Sicília, conhecido por Antonino, dada a sua baixa estatura. “Minha mãe não tinha muito interesse nessa história. O que acontece é que a família Konder teve alguns casamentos com famílias tradicionais do Sul – ela nasceu em Santa Catarina –, e entre essas ligações há esse parentesco com o comendador Breves. Minha mãe deveria ser bisneta ou tataraneta dele”, ele calcula.
Os Konder eram mais abonados que os Comparato e davam mais importância à educação. “Eles chegaram no começo do século 19, e os Comparato, mais no final do século, em Santos, litoral de São Paulo, em 1893”, lembra ele, que nasceu na mesma cidade.
“Em Santos havia certa prosperidade para os imigrantes, mais tarde meu avô comprou o Grande Hotel Guarujá. Meu pai nunca foi um homem rico, nunca teve propensão para ganhar dinheiro, mas guardou tudo o que recebeu de herança. Ele não estudou, não era formado, era um homem conservador. Minha mãe foi uma das primeiras mulheres a cursar direito da USP. A família dela dava muita importância para a educação, mas depois do casamento acabou não se formando por causa do meu pai. Seria impossível ela formada, ele, não”, diz.
A família de Maria Sulamita acabou se envolvendo com a política em Santa Catarina. Vitor Konder foi ministro da Aviação e de Obras Públicas de Washington Luís, de 1926 a 1930. Arno Konder se tornou diplomata. Antonio Carlos Konder Reis e Jorge Konder Bornhausen foram governadores de Santa Catarina, o primeiro entre 1975 e 1979 e o segundo entre 1979 e 1982. “Eu soube mais tarde, estudando história, que meu tio-avô tinha sido ministro da Aviação”, conta Comparato.
Vem do tempo em que cursava direito no largo São Francisco o interesse de Comparato por diferentes aspectos da vida da população negra no Brasil em relação à população branca – e, por isso, era acusado de comunista. “Tinha alguns professores conservadores, reacionários, estávamos em plena ditadura, e eles me chamavam de comunista porque eu defendia os pobres.” Esse interesse veio também de sua proximidade com a Igreja Católica. Ele era um católico fervoroso então, hoje não mais, e com o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo.
Durante o período mais difícil da ditadura, dom Paulo costumava procurá-lo para que defendesse pessoas perseguidas. “Eu o auxiliei em várias ocasiões, ele era um homem admirável”, lembra. “Além disso, naquela época a grande preocupação da Igreja era com os miseráveis, com aqueles que precisavam de auxílio. Foi quando entendi que os mais miseráveis eram, na sua grande maioria, os descendentes de africanos. E essa história é terrível.”
O jornalista Laurentino Gomes, autor da trilogia de livros Escravidão, calcula que,