Políticos negros no Brasil: o que sabemos sobre seus antepassados

Por Amanda Audi

Políticos negros no Brasil: o que sabemos sobre seus antepassados

A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center

A Agência Pública pesquisou a genealogia de todos os atuais senadores, governadores e ex-presidentes após a ditadura militar para o projeto Escravizadores. Não tivemos dificuldade em encontrar políticos cujas famílias detêm o poder há centenas de anos, com patrimônios de antepassados construídos à custa do trabalho de pessoas escravizadas. Mas não encontramos ninguém no caminho inverso – ou seja, que descendem de escravizados – na atual legislatura.

Analisamos as genealogias dos políticos que se declaram pretos ou pardos. Atualmente, 21 dos 81 senadores e nove dos 27 governadores se classificam nessas categorias. Nenhum presidente ou ex-presidente se entende como negro – aliás, o único da história brasileira foi Nilo Peçanha, que assumiu a Presidência em 1909.

Já mostramos em uma reportagem do projeto como é difícil traçar a genealogia de pessoas negras no Brasil. Ao serem sequestradas e forçadas a trabalhar como escravizadas no Brasil, suas identidades e culturas foram apagadas. Parte dos registros nos cartórios e outras fontes oficiais se refere a elas apenas com o primeiro nome ou com o sobrenome de seus “donos”, fazendo com que se torne praticamente impossível entender suas origens.

Ainda assim, esse é o tipo de informação que poderia ser passado de pai para filho ao longo de gerações. Em casos em que os registros oficiais ignoram populações marginalizadas, os relatos orais ganham importância. No entanto, nenhum dos parlamentares declarados negros ou pardos que responderam à Pública sabem sobre os seus antepassados mais antigos. Recebemos as respostas de seis dos 30 políticos. 

O senador Paulo Paim (PT-RS) é um dos três senadores que se declara preto. Ele não sabe a origem de antepassados mais antigos que seus bisavós, que trabalhariam cuidando de cavalos. “Provavelmente [os antepassados eram escravizados], mas eu teria que pesquisar e me aprofundar mais. Realmente não sei”, disse.

Paim nasceu em 1950 em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, em uma família com nove irmãos. O pai era metalúrgico, e a mãe, dona de casa e analfabeta. Ele relata ter passado por vários episódios de racismo. 

“Um dia, eu menino ainda, com 7 ou 8 anos, cheguei em casa e falei para a minha mãe: ‘Mãe, me chamam de negro para lá, negro para cá’. Ela disse: ‘Não dá bola. Sabe por que eles dizem isso? Porque eles têm ciúmes de ti. Porque você era um príncipe na África'”, o senador já contou. Disse também que um professor lhe informou que não passaria de “um servente, um colocador de paralelepípedos.” 

Em um discurso na Câmara em 1996, Paim contou sobre outro episódio de racismo, mas dessa vez sofrido por seu pai: “Meu pai, Ignácio Alves Paim, viajava com meu irmão quando capotou o carro. Foi levado para um hospital, e lá notamos que o médico não estava dando o atendimento devido a ele. Quando interpelamos o médico sobre o atendimento prestado ao meu pai, ele nos disse: ‘Se fosse uma mulher bonita, eu estaria aqui todos os dias. Agora, um negro velho e que está morrendo, tenho mais o que fazer’. No momento houve uma reação da família contra aquele médico, que foi simplesmente afastado do paciente. Meu pai faleceu; esse fato aconteceu há 20 anos, e o triste é ver que isso continua acontecendo sem que os culpados sejam punidos”.

O senador foi o autor do projeto de lei que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, a partir do qual vieram políticas como a lei de cotas em universidades e para o funcionalismo público. O conjunto de regras previa a obrigatoriedade do ensino da história negra em escolas, o reconhecimento da capoeira como esporte e linhas de crédito para quilombolas, entre outros.

A senadora Eliziane Gama (PSD-MA), autodeclarada parda, diz que até os seus bisavós não há registro de pessoas escravizadas em sua família e que antes disso ela não sabe sobre os outros antepassados. O governador Paulo Dantas (MDB-AL) afirmou, por meio de sua assessoria, que “não tem registros completos de sua genealogia e, portanto, não pode precisar sua ancestralidade”. Elmano de Freitas (PT-CE), governador do Ceará, também respondeu que “infelizmente” não tem conhecimento sobre a sua genealogia. Os dois se declaram pardos.

Assessores dos senadores Magno Malta (PL-ES) e Eduardo Gomes (PL-SE) informaram que eles não tinham tempo para responder sobre as suas genealogias. Os demais senadores autodeclarados pretos e governadores autodeclarados pretos e pardos também foram procurados, mas não responderam até a publicação desta reportagem. 

Os senadores Jader Barbalho (MDB-PA) e Jayme Campos (União Brasil-MT) já apareceram em uma outra reportagem da série que tratou de descendentes de supostos escravizadores que foram, recentemente, investigados por trabalho análogo à escravidão em suas fazendas. Ambos se autodeclaram pardos. Procurados, não deram retorno.

A governadora Fátima Bezerra (PT-RN) é a única da lista de governadores autodeclarados negros a ter registro de supostos escravizadores entre os seus antepassados. Há indícios de que um de seus tataravós, José de Góes de Mendonça, teria escravizados que foram declarados como bens no inventário de sua esposa, Inácia Joaquina, conforme o documento original registrado pelo Laboratório de Documentação Histórica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ela não respondeu à Pública.

O primeiro deputado federal negro 

O primeiro político preto e com discurso racial afirmativo no Brasil foi Manoel da Motta Monteiro Lopes, eleito deputado federal em 1909, duas décadas depois da abolição da escravidão. Ele nasceu livre em 1867, de pais africanos – a mãe trabalhava como comerciante e o pai era alfaiate.

Um dos poucos “negros letrados” de Recife em sua época, Monteiro Lopes se formou em direito e se candidatou a deputado pelo Rio de Janeiro, então capital do país. Ele sofreu diversos protestos da sociedade branca para impedir que fosse diplomado e foi ridicularizado por sua cor. Um jornal da época disse que a sua candidatura era uma “mancha negra no horizonte”. Outro dizia que tudo iria “ficar preto” no dia da eleição. 

Um jornal apontava que uma associação de classe de ex-senhores de escravizados liderava o movimento para impedir a sua diplomação. Apesar disso, Monteiro Lopes foi o terceiro mais votado e recebeu protestos populares em seu favor para que assumisse o cargo. No dia da posse, seu partido soltou uma pomba branca e outra preta como símbolo dos novos tempos, como registrado na imprensa. Ele morreu um ano depois, de complicações decorrentes da diabetes.

O Brasil teve outros políticos negros depois dele, mas poucos falaram ativamente sobre o passado ligado à escravidão. Um deles foi Abdias do Nascimento, ex-senador falecido em 2011 e cujas duas avós foram escravizadas no período do Império. Eleito em 1991, Nascimento foi saudado como primeiro senador negro do país. Mas ele mesmo contestou a informação.

No discurso de posse, ele disse que havia feito uma pesquisa histórica e teria encontrado 22 senadores com origem negra antes dele, mas que passaram à história como brancos. A Agência Senado registrou o seu levantamento. “Tive de usar de uma sagacidade de pesquisador à beira da astúcia, indo a dezenas de fontes, cruzando vários dados, cotejando muitas informações, para chegar a esse número. Isso porque aqueles 22 senadores não assumiram etnicamente a sua condição de afro-brasileiros, muito menos as causas da negritude”, disse ele na época.

No mesmo discurso, ele disse que, além de Nilo Peçanha, outros ex-presidentes também seriam negros: Rodrigues Alves e Tancredo Neves. Mencionou outros políticos de origem supostamente negra mesmo na época da escravidão. No caso de Tancredo, ele explicou que se baseou na fisionomia com traços negros de dom Lucas Moreira Neves, ex-arcebispo da Bahia e primo do ex-presidente que morreu antes de tomar posse.

“Biógrafos e historiadores tentaram mascarar identidades, driblar genealogias, omitir ascendências, dissimular traços e características étnicas. Retratistas, pintores e fotógrafos, por ordem dos senadores ou de seus familiares ou mesmo por moto próprio, falsificaram, europeizaram fisionomias, criaram cabelereiras, procurando esconder o ‘estigma africano dos retratados’, disse. “Talvez eu seja o primeiro, sim, a assumir orgulhosamente sua etnia, sua cultura e religião, suas origens africanas e, sobretudo, a luta coletiva do povo africano em nosso país.”

Sub-representação histórica

A sub-representação de negros na política brasileira é histórica. Houve apenas duas eleições na história brasileira com mais candidatos autodeclarados negros do que brancos: em 2022 (50,2%) e 2024 (52,7%), de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mas isso não se traduziu em vitória. Apenas 32% dos candidatos negros de 2022 foram eleitos. Em 2024, um terço dos prefeitos e 45% dos vereadores negros obtiveram vitória.

“É um contrassenso tendo em vista que a população brasileira tem 56% de pessoas que se declaram negras”, afirma Alexandre Braga, mestrando em direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-presidente da União de Negros e Negras pela Igualdade em Minas. 

Para ele, mecanismos da Justiça Eleitoral impedem o acesso mais amplo de pessoas negras à política. Um dos fatores é a autodeclaração racial, que, instituída em 2014, não depende de uma banca avaliadora para ser confirmada. Em outras palavras, basta que o candidato se autodeclare negro ou pardo para que seja considerado como tal.

Cinco dos nove governadores negros eleitos em 2022 haviam se autodeclarado brancos em eleições anteriores e depois migraram para pardos. “Temos que respeitar a autodeclaração racial, mas algumas candidaturas certamente seriam contestadas caso houvesse uma banca como nas universidades”, diz Braga, que já fez parte da banca de Ações Afirmativas da UFMG. Uma análise do UOL mostrou que pelo menos metade dos parlamentares eleitos em 2022 não passaria numa banca de heteroidentificação racial.

As eleições de 2022 foram as primeiras em que partidos foram obrigados a destinar uma parte proporcional de seu fundo eleitoral para candidaturas negras, que naquele ano chegou a quase R$ 5 bilhões. Isso causou um boom de candidatos autodeclarados negros. Em alguns casos, houve polêmica. Antônio Carlos Magalhães Neto, o ACM Neto, sofreu desgaste após ter passado de branco a pardo, e acabou perdendo.

Além disso, não é claro quanto a mais de dinheiro os candidatos autodeclarados negros recebem do fundo eleitoral. Cada partido pode criar as suas regras, e em alguns casos os critérios são pouco transparentes. Braga acredita que o TSE deveria criar regras para isso e publicar quanto cada candidato recebeu por cota racial.

“Sem uma política efetiva de financiamento de candidaturas negras, com programa de incentivo, você abre espaço para pessoas mal- intencionadas, que podem se aproveitar do sistema para engordar o caixa da campanha e para a perpetuação de famílias que dominam o poder há séculos”, afirma Braga. “A gente vê na TV sobre o apartheid na África do Sul e fica escandalizado. De negros não terem os mesmos direitos que brancos. Mas isso acontece no Brasil na questão do poder desde sempre.”