Produção x poluição: as disputas que travam um tratado global sobre plásticos

Por Isabel Seta

Produção x poluição: as disputas que travam um tratado global sobre plásticos

“Meu entendimento é que, se lidarmos com a poluição plástica, não deveria haver problema em produzir plásticos. Porque o problema é a poluição, não os plásticos em si.” Foi assim que o representante da Arábia Saudita reduziu o grande impasse nas negociações por um tratado global contra a poluição por plásticos

De um lado, estavam alguns países produtores de combustíveis fósseis e de plásticos que gostariam de reduzir o debate a medidas de aprimoramento da gestão de resíduos, com reciclagem, por exemplo. Do outro, dezenas de nações favoráveis a limitar a produção plástica. 

Era 1º de dezembro, o último dia de discussão entre os mais de 170 países reunidos em Busan, na Coreia do Sul, com a missão de finalizar um acordo inédito para enfrentar uma crise visível nos oceanos, nos rios, no estômago de animais marinhos e até nos órgãos humanos: a onipresença do plástico. 

Um pouco antes, no auditório lotado, as representantes de México e Ruanda, falando em nome de quase cem nações, tinham arrancado vários minutos de aplausos ao cobrar uma acordo com medidas obrigatórias, com peso de lei – e não voluntárias. E mais: que o texto fosse ambicioso ao determinar a eliminação gradual de determinados produtos e de substâncias químicas tóxicas usados na produção de plásticos. 

Para o diplomata da Arábia Saudita e para o representante do Kuwait, que falou em nome do chamado “grupo de países que pensam igual” (os “like-minded countries”, em tradução livre, que inclui Rússia e outros países produtores de combustíveis fósseis), medidas como essas, porém, fugiriam ao “escopo” de um tratado, cujo objetivo declarado é “proteger a saúde humana e o meio ambiente da poluição plástica”. 

Sem consenso, sem tratado. E, ao final do que deveria ter sido a última rodada de debates, os países não conseguiram concluir o acordo, adiando as definições para o ano que vem.

Enquanto isso, a crise se agrava. A cada ano, o mundo produz mais de 430 milhões de toneladas de plástico e a perspectiva é que, no ritmo atual, a produção triplique até 2060. Mas a promessa, por décadas propagandeada pela indústria petroquímica – e ainda defendida pelos países produtores –, de que a reciclagem seria a solução para essa imensa quantidade de resíduos jamais se concretizou. 

Para piorar, evidências históricas apontam que empresas do setor sempre souberam se tratar de uma promessa falsa, impossível de ser cumprida por falta de mercado, tecnologia e por características dos plásticos (saiba mais abaixo). 

A taxa global de reciclagem nunca passou de 10%. Assim, a grande maioria dos plásticos produzidos vai parar no lixo e, em seguida, no ambiente, sem nunca desaparecer por completo. O plástico apenas se degrada em pedaços menores, os microplásticos, que se dispersam pelas águas e pelo ar, chegando até ao interior dos nossos corpos. 

Em Busan, os países concordaram em proibir o despejo de lixo plástico a céu aberto ou nos oceanos e que é necessário estabelecer sistemas seguros e resilientes de coleta, transporte, separação, reciclagem e descarte, com uma transição justa para trabalhadores do setor, como catadores informais.

Houve união, ainda, sobre a criação de metas e objetivos para aumentar a coleta e a reciclagem. E, nas etapas anteriores da cadeia, tomar medidas para melhorar o design dos produtos, visando aumentar o reúso e a reciclagem deles e incentivar a economia circular (modelo de produção e consumo que busca reduzir o desperdício e geração de resíduos).

Mas apesar da importância dessas medidas, que visam a uma economia circular, expandindo o reúso e a reciclagem dos plásticos, elas são insuficientes para resolver todo o problema. Para dezenas de países, amparados em dados científicos e de organizações da sociedade civil, é impossível acabar com a poluição sem eliminar alguns produtos plásticos em nossas vidas. 

A coalizão de alta ambição, grupo de 67 países (entre eles Peru, Chile, Reino Unido, França, Ruanda e Nigéria), por exemplo, defende o estabelecimento de metas para a redução da produção no mundo. 

Plásticos de uso único

Um dos alvos, defendem, deveriam ser os plásticos de uso único, como sacolinhas, embalagens de alimentos e de bebidas, canudos e outros utensílios descartáveis, que respondem por mais de um terço de todos os plásticos consumidos globalmente. São esses os itens mais comuns de lixo plástico encontrado no ambiente, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).

Uma das medidas propostas no tratado que não obteve consenso – apesar de ter apoio de mais de 90 países, incluindo o Brasil – era a eliminação gradual até a proibição de alguns desses itens, como sacolinhas, talheres, copos e pratos descartáveis, canudos, palitos plásticos usados para prender balões infláveis, hastes de cotonete e misturadores de bebidas. 

No Brasil, um projeto de lei em tramitação ainda inicial no Senado já caminha nessa direção ao vedar a fabricação, importação, distribuição, uso e comercialização desses e outros produtos descartáveis.

Para Carlos da Silva Filho, presidente da ISWA (Associação Internacional de Resíduos Sólidos) e integrante do Conselho Consultivo do Secretário-Geral da ONU sobre resíduos, medidas de redução e banimento exigem cautela. Primeiro por seus impactos em vários setores da economia. Segundo porque, no atual modelo, banir o plástico significa apenas colocar outro material no lugar.

“Será que não vai ser um material também de uso único e teremos o mesmo problema, de uma imensa quantidade de resíduos, só que de outro material?”, questionou ele em entrevista à Agência Pública

“Nós precisamos que o processo de produção e de consumo seja direcionado para a circularidade, e não para o fim de linha. Precisamos pensar a produção desses materiais para que eles não sejam de uso único”, diz.

A produção e o uso que a sociedade faz desses itens é paradoxal: se vale de um material cuja principal característica é a durabilidade para fazer produtos que vão rapidamente para a lata de lixo. 

Mas nem sempre foi assim.

Rumo à lata de lixo

Leves, versáteis e resistentes, os plásticos de fato têm qualidades que os tornam o melhor material para muitas aplicações. Nos anos após a Segunda Guerra Mundial, eles começaram a ser produzidos em larga escala inicialmente para substituir outros materiais usados em bens duráveis, como geladeiras, rádios e peças de automóveis – itens comprados algumas poucas vezes ao longo da vida. 

“A indústria reconheceu que seu futuro dependia do desenvolvimento de novos tipos de mercado, e as inovações constantes na ciência dos polímeros estavam pavimentando o caminho”, escreveu a jornalista e escritora americana Susan Freinkel em seu livro Plastic: a toxic love story (Plástico: uma história de amor tóxica, em tradução livre). 

A matéria-prima dos plásticos é o petróleo, que, ao passar por um processo químico chamado polimerização, se transforma em diferentes tipos de polímeros – ou resinas – que possuem características e aplicações diversas. 

Apesar da grande variedade de polímeros, oito deles respondem por 95% de todos os plásticos primários já produzidos. São conhecidos como PET (politereftalato de etileno, das garrafas de mesmo nome), PVC (policloreto de vinila, usado para fazer canos, placas e brinquedos), PP (polipropileno, utilizado em baldes, sacos de salgadinho, tampas de garrafa) e os PEBD (polietilenos, de diferentes densidades, usados em sacolas, bandejas, embalagens e filmes para alimentos). 

“Em pouco tempo, todos os materiais duráveis, desenvolvidos para as adversidades da guerra, estavam sendo transformados em conveniências efêmeras de paz”, escreveu Freinkel. 

“O seu futuro está no vagão de lixo”, resumiu, em 1956, um palestrante na conferência anual da Sociedade da Indústria Plástica (SPI), associação americana formada por empresas petroquímicas como Exxon e Mobil, Dow, DuPont, entre outras. Era o recado para que elas investissem em produtos que seriam descartados.

Ainda assim, a cultura do reúso estava tão incutida na sociedade americana traumatizada pela guerra que a indústria precisou investir em publicidade e campanhas para promover a mudança de comportamento que veio a desembocar na crise atual – a do descarte rápido.  

Não demorou muito. Em 1955, a revista americana Life publicou um artigo cujo título celebrava uma nova tendência: “A vida descartável: itens descartáveis reduzem tarefas domésticas”. O texto vinha acompanhado por uma foto de um homem, uma mulher e uma criança jogando para cima dezenas de itens de plástico, como bandejas, copos, pratos, talheres, potes e palitos. O argumento era que as pessoas poderiam se livrar de, por exemplo, ter de lavar utensílios reutilizáveis.

Três anos depois, o editor da revista especializada Modern Plastics parabenizava a indústria por “encher as latas de lixo”, segundo um relatório publicado em fevereiro deste ano pela organização não governamental Centro para Integridade Climática (Center for Climate Integrity), que reuniu documentos históricos de petroquímicas e suas associações. “Os dias felizes terão chegado quando ninguém mais considerar que embalagens plásticas são boas demais para serem jogadas fora”, escreveu ele. 

“Já nos anos 1960, 1970, no entanto, começaram a ser identificados os problemas da poluição plástica, por meio do descarte inadequado. Então quais foram as soluções apresentadas pela indústria? Primeiro incineração e, depois, reciclagem”, contou à Pública Ecimara dos Santos Silva, do Comitê Gestor da Aliança Resíduo Zero Brasil. 

Os problemas da reciclagem

A reciclagem, porém, sempre teve limitações conhecidas, e, ao longo das últimas décadas, os países não conseguiram aumentar suas taxas de maneira proporcional ao crescimento da produção. De acordo com o Pnuma, das 9,2 bilhões de toneladas de plástico produzidas desde a década de 1950, mais de 7 bilhões viraram lixo. 

Segundo a OCDE, apenas 9% do plástico produzido é reciclado no mundo. No Brasil, a depender do índice, a taxa de reciclagem é um pouco maior. Segundo a Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast), em 2023, foi de 20,6%. Já um levantamento da WWF Brasil de 2019, com base em dados do Banco Mundial, apontou que apesar de o país coletar 91% de lixo plástico, apenas 1,3% eram reciclados.

Vários fatores explicam a baixa taxa de reciclagem dos plásticos. Primeiro, porque os produtos tendem a ser feitos com diferentes resinas, que não podem ser recicladas juntas. Como elas têm diferentes propriedades químicas e físicas, elas derretem em temperaturas diferentes, o que inviabiliza o processo conjunto.

Assim, uma garrafa marcada com o número 1 envolto por setas que formam um triângulo, o símbolo para PET, não pode ser reciclada junto com um frasco para detergente marcado com o número 2, símbolo para PEAD. 

Os números envoltos pelo triângulo formado por setas, inclusive, não significam que aquele material é reciclável. Criados pela grande associação do setor petroquímico, a SPI, no final dos anos 1980, os símbolos apenas indicam o tipo de resina usado no produto. A confusão, no entanto, se explica pelas setas em triângulo – símbolo universal da reciclagem. 

Segundo, porque a reciclagem mecânica, processo mais utilizado no qual o plástico é reaquecido para ser remodelado, pode aumentar a potencial carga tóxica do material que passará a compor outro produto. E a falta de transparência sobre quais substâncias químicas são utilizadas na manufatura dos plásticos adiciona mais uma camada de insegurança ao processo.

É a economia

A reciclagem também enfrenta barreiras logísticas e econômicas, não só no Brasil, mas no mundo. Diferentemente de indústrias mais integradas, como a do alumínio e a do papel, a petroquímica e a de transformação dos plásticos é composta por empresas de ramos e escalas completamente diferentes, o que dificulta os investimentos financeiros e tecnológicos necessários para ampliar a reciclagem. 

Não à toa, enquanto em 2022 o Brasil reciclou a exata quantidade de latinhas de alumínio que produziu, a reciclagem plástica, no geral, foi de 26%, segundo a Abiplast. Algumas resinas, como a PET transparente, possuem um mercado maior e atingem taxas mais altas. Outras se tornam lixo – seja por indisponibilidade tecnológica, falta de logística ou ausência de mercado. É o caso para as embalagens multicamadas, que levam também alumínio, ou para as garrafas de água flexíveis e as garrafas e frascos de plásticos coloridos. 

Segundo um estudo da Oceana, organização sem fins lucrativos, o Brasil responde por 8% de todas as toneladas de resíduos plásticos que chegam aos oceanos anualmente. 

Para que a reciclagem de determinado material aconteça, explica Carlos da Silva Filho, da ISWA, é necessário uma integração entre regramento estatal, infraestrutura pública, prestação de serviços e demanda de mercado. E todos esses pontos precisam funcionar.

“O Sul global, de forma geral, tem uma carência grande de infraestrutura – de coleta seletiva, de unidades de separação de resíduos”, diz ele.

No Brasil o problema é profundo: ainda há mais de dois mil lixões em funcionamento. Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), 61% dos resíduos sólidos urbanos produzidos acabam em aterros sanitários, ou seja, não têm destinação adequada. E é o plástico que responde pela maior fatia (quase 17%) dos resíduos sólidos secos – recicláveis, em teoria.

No mundo, há um problema de falta de mercado de compra. “Não adianta ter regramento e infraestrutura se a indústria não tem onde usar o material reciclado”, explica Silva Filho, que defende que sejam estabelecidos percentuais mínimos de material reciclado na composição de determinados produtos. 

A ausência de viabilidade econômica para a reciclagem é um problema conhecido há tempos pela indústria petroquímica, como mostra a recente acusação do estado da Califórnia contra a ExxonMobil. 

“Por décadas, a ExxonMobil vem enganando o público para nos convencer de que a reciclagem poderia resolver o lixo plástico e a crise de poluição, quando eles claramente sabiam que isso não era possível”, disse o procurador-geral do estado americano, que, em setembro, entrou com o processo contra a gigante petroquímica.

Já em 1989, o presidente do Vinyl Institute, associação que nasceu da SPI, disse em uma conferência: “A reciclagem não pode continuar indefinidamente e ela não resolve o problema dos resíduos sólidos”. 

A explicação era – e continua – simples: resinas virgens têm mais qualidade e são mais baratas do que produzir material reciclado. 

“O plástico é feito a partir do petróleo. Essa é uma cadeia produtiva que recebe subsídios desde a extração. Um estudo recente mostrou inclusive que esse é o caso para o Brasil. A nossa indústria [petroquímica] recebe em torno de 45 milhões de dólares em subsídios por ano”, diz a engenheira ambiental Lara Iawanicki, da ONG Oceana. 

“O material reciclado precisa se tornar mais barato do que a matéria virgem”, diz Carlos da Silva Filho. “Mas temos uma política de resíduos sólidos que diz que precisamos priorizar a reciclagem, só que a política tributária brasileira dá incentivo para o material virgem.”

O estudo citado por Iawanicki, elaborado pela consultoria ambiental Eunomia, mostra que, nos 15 países líderes em produção, a indústria de polímeros para plásticos primários recebe 30 bilhões de dólares em subsídios anualmente. A China é a líder, com mais de 11 bilhões de dólares em subsídios, seguida pela Arábia Saudita, com 8 bilhões.

“É muito mais barato fabricar plástico e colocar no mercado do que estruturar todo o processo de logística reversa, coleta seletiva e remunerar adequadamente os catadores pelos serviços que eles prestam. Então essa conta não fecha – e nunca fechou”, explica a engenheira ambiental. 

Não só isso. A indústria dos combustíveis fósseis também vê na produção de resinas para plásticos um caminho para sobreviver em meio à transição energética que visa substituir os combustíveis fósseis, cuja queima é a principal causa das mudanças climáticas. 

Ainda em 2018, uma análise da Agência Internacional de Energia (IEA) mostrou que os petroquímicos (usados para produzir plásticos, fertilizantes e roupas) já estavam se tornando os grandes motores da demanda por petróleo – à frente dos combustíveis para carros, aviões e caminhões. A previsão é que, até 2050, os petroquímicos respondam por quase metade do crescimento da demanda por petróleo. 

Um levantamento da consultoria GlobalData aponta para uma expansão de projetos petroquímicos nos próximos anos, a maioria para produzir polipropileno (de embalagens de manteiga e sorvete, tampas, cadeiras e por aí vai) e polietileno. Os países que lideram essa expansão são, justamente, os que, nas discussões do tratado global, não apoiaram medidas de eliminação gradual de alguns produtos plásticos e substâncias químicas preocupantes: China, Irã, Índia, Rússia e Estados Unidos. 

Em 2025, eles e os demais países precisarão voltar às negociações e definir quanto – e como – vão intervir na produção de plásticos. 

“Aqueles 3 Rs: reduzir, reutilizar e reciclar são muito bonitos, mas não estão acontecendo. Eu tenho defendido os 3 Ds: descolar o crescimento econômico da geração de resíduos, desintoxicar todas as cadeias de produção – não só do plástico –, reduzindo ao mínimo as substâncias químicas, e descarbonizar essas operações”, afirma Carlos da Silva Filho.