Como se dá um golpe de Estado?
Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Xeque na Democracia, enviada toda segunda-feira, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.
A pergunta se torna importante à medida que, embora haja vastas evidências de que Jair Bolsonaro e seus comparsas tentaram destituir um governo legitimamente eleito, grande parte da população ainda duvida que o presidente queria de fato dar um golpe.
Esta é, hoje, a única linha de defesa adotada por figuras-chave do bolsonarismo – e que conta com a capacidade de manipulação do discurso público do bolsonarismo. “Se criam factoides para desviar a atenção do principal, do corte de gastos, da reforma administrativa e outras coisas”, afirmou Ronaldo Caiado. “É uma viagem de alguém que usou droga pesada. Simplesmente é inexequível aquilo que foi cogitado. Se foi cogitado, é inexequível”, disse Flávio Bolsonaro quando indagado sobre a conspiração. A estratégia não é nova. Como de costume, a comunicação bolsonarista trabalha em duas frequências, aquela que ameaça com linguagem violenta, inaceitável, chocante, e aquela que, ao mesmo tempo, diz que é tudo uma grande brincadeira e os demais estão exagerando, não têm senso de humor.
Com o avanço das investigações da Polícia Federal (PF), mais fatos vão se juntando à trama, e mais difícil fica a negação; paradoxalmente, mais claro fica também o amadorismo dessa turma, sua tosquice, o que pode render algumas risadas e ironias dos articulistas, mas também lhes serve como escudo: aquilo ali não podia ser sério, mesmo.
Só que era. A verdade é que golpes são eventos caóticos, embolados, confusos. E explicar isso faz parte da tarefa dos jornalistas, nós que (ainda) somos responsáveis por narrar a história no desenrolar dos fatos, já que, nos livros de história, golpes de Estado aparecem como movimentos bem coreografados, precisos, fadados a darem certo.
Nem é, nem nunca foi assim. Lembro apenas dois eventos recentes.
Durante dois dias, o mercenário russo Yevgeny Prigozhin, chefe do Grupo Wagner, tentou impetrar um golpe contra a cúpula das Forças Armadas de Vladimir Putin, uma quartelada com seu exército de mercenários, que tomou o QG do Exército russo em Rostov-on-Don e marchou em direção a Moscou em 22 e 23 de junho de 2023. No caminho, o grupo derrubou aeronaves militares e matou mais de uma dezena de pilotos. Moscou entrou em alerta militar e montou checkpoints no caminho, e Putin foi à TV chamá-lo de traidor. Somente após um acordo mediado pelo presidente da Bielorrússia, o golpe foi cancelado. Dois meses depois, a aeronave em que Prigozhin voava despencou do céu. O golpista não durou nem um trimestre vivo.
Mais perto de casa, no Peru, outro golpe macambúzio fracassou quando o ex-presidente Pedro Castillo tentou reverter um processo de impeachment dissolvendo o Congresso e intervindo em diferentes esferas da Justiça. Enfraquecido, o “contragolpe” foi rejeitado pela maioria dos partidos políticos e chegou a ter algum apoio popular, em protestos reduzidos; Castilho foi destituído e preso.
Era 7 de dezembro de 2022. Na mesmíssima época, segundo comprovou a PF, conversas golpistas aconteciam no Palácio do Planalto, diante de altos membros do governo e dos comandantes das três Forças Armadas.
Segundo alguns relatos, a prisão do peruano foi um dos motivos que levaram Bolsonaro a titubear quanto ao seu próprio plano – além da covardia que lhe é natural.
No caso brasileiro, o uso preciso da linguagem fica mais difícil não apenas pela exploração da dubiedade pela estética bolsonarista, mas também porque uma parcela significativa dos comentaristas políticos errou, no passado, ao gritar lobo quando lobo não havia. Sempre me incomodou o uso da palavra “golpe” para falar sobre o impeachment de Dilma – uma enorme conspiração “com Supremo, com tudo”, um pacto de corruptos, de homens, de ricos e poderosos, sim, e sem dúvida uma tremenda sacanagem. Mas não foi um golpe. Foi um impeachment injusto, mas permitido pela capenga lei do impeachment – que, aliás, desde então não mudou um tiquinho e pode vir a se repetir igualzinho.
Talvez a tarefa urgente do jornalismo, agora, seja mesmo explicar o que é um golpe de Estado. Repetir que golpes são processos históricos complicados e bem caóticos. Como qualquer conspiração, nunca se sabe se a coisa vai vingar ou não; trabalha-se para arregimentar forças favoráveis, mas a hora H é tão incerta como um nascimento ou uma morte.
O jornalista Elio Gaspari ensina, no seu livro A ditadura envergonhada, como, apesar de haver enormes esforços na elite brasileira por parte do governo dos Estados Unidos, com financiamento da CIA ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) para combater o governo João Goulart, o golpe de 64, quando aconteceu, era tão incerto que o próprio general Olympio Mourão Filho duvidou dele. Às duas da madrugada, três horas antes de sair com suas tropas de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro, escreveu em seu diário: “Dentro de poucas horas deflagrarei um movimento que poderá ser vencido, porque sai pela madrugada e terá de parar no caminho”. Completou: “Morro pobre, mas até a última hora posso andar de cabeça erguida. Viva o Brasil!”. Duas horas depois, quando soube da marcha de Mourão, o comandante do II Exército, Amaury Kruel, disse ao telefone: “Isso não passa de uma quartelada do Sr. Mourão, não entrarei nela”.
Só as 22h, ele entrou. Deu-se o golpe.
Para que haja um golpe de Estado, primeiro, é preciso que haja uma pulsão golpista na sociedade, resultado de uma narrativa sólida que justifique isso. Em 1954, era o mar de lama, em 1964 era o comunismo, agora em 2022 era a fraude nas eleições – que se ligava à percepção de que Lula, corretamente condenado por corrupção, se beneficiou de um corrupto STF justamente para permanecer no poder. Resultado de um erro crasso, histórico do STF, de não impor freios e contrapesos à Lava Jato lá atrás.
Mas eu divago. Volto ao meu argumento. O bolsonarismo tinha o primeiro ponto. Esse era o foco do que a PF chama de “núcleo de desinformação e ataques ao sistema eleitoral”.
O segundo ponto é o apoio de um grupo social coeso que acredita que é justificável interromper a democracia, e que aceite ir às ruas em nome dessa causa. Não importa tanto o tamanho desse grupo; no jogo de espelhos das redes sociais, o que importa é criar a impressão de se tratar de uma massa, convencendo um número significativo de tomadores de decisão a aderir. Isso, também o bolsonarismo tinha, ou chegou bem perto de ter. Era o foco do que a PF chama de “núcleo operacional de apoio às ações golpistas”.
Chegamos ao terceiro ponto, por aqui o mais fundamental: no Brasil, para dar golpe é preciso das Forças Armadas. Nesse quesito, os conspiradores adotaram diversos estratagemas para que, na hora H, os poucos resistentes aderissem à empreitada. Era esse o “núcleo responsável por incitar militares a aderirem ao golpe de Estado”.
Apesar de não terem convencido os parcos famosos “5 generais”, conseguiram uma vitória impressionante: conspiraram abertamente, diante não só do Alto Comando das Forças Armadas, mas do ministro da Defesa, da cúpula do PL e de diversos grupos militares dos mais diferentes níveis sem terem sido presos, acusados de traição, sedição ou coisa que o valha. Assim, todos prevaricaram. Todos esperaram pra ver o que ia acontecer na hora H.
Mais sutilmente, a conspiração foi apresentada até à general Laura Jane Richardson, comandante do Comando Sul, e Lloyd Austin, secretário de Defesa norte-americano, além do ex-embaixador americano no Brasil Thomas Shannon.
Como tem demonstrado a investigação da PF, havia centenas de golpistas articulados, prontos para causar o caos necessário para que as Forças Armadas impusessem a ordem. Mas havia também uma quantidade incontável de outros que queriam pagar pra ver – e poderia se decidir por um lado e por outro.
No golpe de 64, o maior “indeciso” era Amaury Kruel, que acordou legalista e foi dormir golpista em 31 de março. Se não o tivesse feito, nossa história seria outra.
Hoje esses, os silenciosos, os que esperavam pra ver, continuam por todo lado, quietos, fingindo que não é com eles. Mas podem, ainda, pender para que lado for o vento. É por isso que será um erro crasso se nós, da imprensa, não conseguirmos comunicar que tivemos de fato, desta vez, uma tentativa real de golpe de Estado. Será um erro crasso se Bolsonaro não for punido, se deixarmos o ciclo da notícia nos levar para outros temas, até que novamente se arme um conluio pela anistia. Mais que erro, será fatal.