O filme, a transição e os atestados de óbito

Por Samarone Lima

“Ainda estou aqui”, filme dirigido pelo cineasta Walter Moreira Salles, que conta a história da prisão e desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, em 1971, e o impacto em uma família de classe média, no Rio de Janeiro, durante a ditadura, chegou a 2,5 milhões de espectadores, em um mês.

O filme mostra o impacto da violência política, e a luta de Eunice Paiva, sua esposa, por verdade e justiça. No momento inicial, movida pelo desafio da sobrevivência, pela sobrevivência, com cinco filhos, Eunice tem que decidir tudo, e não esmorecer, psiquicamente.

A repercussão do filme, além das indicações a prêmios internacionais, como Oscar e Globo, provoca um sentimento catártico. O país vê, no cinema, o que o pacto político conservador, nos últimos anos da ditadura, produziu: a transição do poder dos militares para os civis aconteceu sem justiça, memória ou reparação.

Somente 25 anos depois do desaparecimento do seu marido, Eunice Paiva conseguiu o atestado de óbito.

Sem o corpo, sem um documento que comprovasse sua morte, ela não consegue movimentar a conta bancária do marido, nem receber o seguro de vida. A toque de caixa, vende o valioso terreno da família, para não faltar comida em casa e pagar o salário da empregada. Um momento impactante, para os filhos, é quando são informados que a charmosa casa onde moram, à beira da praia, no Leblon, Rio de Janeiro, foi alugada, e teriam que se mudar, em poucos dias, para o apartamento da família, em São Paulo.

É uma das cenas mais comoventes do filme, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que tinha 11 anos, quando seu pai foi levado de casa. A casa vai sendo desmontada, cada filho vai chorando ou engolindo seu choro, deixando os amigos para trás, a escola, o bairro, as memórias, a vida que teriam naquele lugar.

Reconhecimento tardio

Somente há três dias, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou a questão dos atestados para os desaparecidos, durante a ditadura. Uma luta que começou em pleno regime militar, e não foi amparada pela Lei da Anistia, de 29 de agosto de 1979.

“Os desaparecidos não tinham Atestado de Óbito, tinham ‘Atestado de Ausência’, e ninguém aceitou isso”, lembra Diva Soares Santana, diretora do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia, conselheira da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e familiar de desaparecidos políticos, que teve a irmã, Dinaelza Santana Coqueiro, desaparecida na Guerrilha do Araguaia, em 1974.

Em 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso, foi sancionada a Lei 9140, que obrigava os cartórios fornecerem atestados de óbito.

Como tem acontecido, ao longo dos anos, a identificação dos crimes cometidos pela ditadura tinha subterfúgios. No espaço para causa mortis, o cartório teria que colocar “de acordo com a Lei 9140/95”. No espaço para o local de desaparecimento, o texto seria o mesmo: “de acordo com a Lei 9140/95”.

A presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, procuradora da República Eugênia Gonzaga, que vinha lutando para a mudança no do documento, lembrou que o texto “sempre foi muito ofensivo”, porque “resolvia problemas burocráticos, mas não reparava, não dizia a verdade”.

Com a decisão do CNJ, o texto do documento terá uma reparação histórica. Na causa mortis, vai constar a informação “de morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”.

“É um acerto de contas legítimo com o passado”, afirmou o presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso.

“É uma conquista, depois de tantos anos, conseguir um atestado desse, mas falta muita coisa”, lembra Diva.

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