“Ainda Estou Aqui”, a ditadura sob uma perspectiva feminina

Por Marco Zero Conteúdo

por Lua Lacerda*

Há muitos filmes sobre a ditadura militar brasileira, mas Ainda Estou Aqui traz uma perspectiva diferente: enquanto diversos outros filmes se concentram na história de homens revolucionários que sacrificaram suas vidas pela liberdade do país ou de mulheres combativas e destemidas, como Dilma Rousseff, a obra de Walter Salles narra a trajetória de Eunice Paiva. O filme encarna uma versão feminina — entre tantas possíveis — sobre os anos de chumbo, representando a experiência de uma esposa branca inserida na elite intelectual e política da época.

A narrativa nos leva ao ambiente doméstico, ao cotidiano de uma família de elite, para revelar o lado ‘do lar’ da tortura. Em vez de heróis públicos, vemos quem carrega as chagas do autoritarismo na “esfera privada”: uma mulher forçada a criar os filhos sozinha, em meio à violência dos “gorilas”, sem sequer derramar uma lágrima. “Nós vamos sorrir”, afirma Eunice Paiva quando os jornalistas pedem uma foto séria e triste da família. Como ela consegue ser tão forte? Claro que nós sempre questionamos e nos surpreendemos com a força das mulheres. 

Afinal, poucas pessoas estão interessadas nas versões femininas sobre os eventos históricos. Na ditadura — e ainda hoje — os heróis masculinos frequentemente ocultam as contribuições e os sofrimentos femininos. O impacto das decisões “públicas” desses homens, no entanto, recai sobre elas. E, assim, sem a participação e as demandas femininas, a agenda pública vai refletindo os interesses dos homens.

Por isso, quando Eunice questiona Baby, personagem de Dan Stulbach que é amigo de seu marido, ela revela o coração da narrativa: “Baby, por que o Rubens foi preso? Eu estive lá, eu vi. Tenho o direito de saber o que Rubens estava fazendo”. Destinadas à gestão da casa e ao cuidado dos filhos, essas mulheres eram frequentemente excluídas da participação política nas decisões tomadas por seus maridos. Essa exclusão era justificada pela ideia da fragilidade feminina branca, que demanda proteção, e pela visão da família como uma instituição sagrada, que cabia às mulheres zelar e preservar. Esse é o ângulo do filme: a experiência de uma mulher branca da elite intelectual e política durante a ditadura militar. 

Enquanto via sua vida desmoronar, criando cinco filhos sozinha, Eunice foi negada até mesmo à verdade sobre a prisão e a morte do marido. Sem sequer saber do envolvimento de Rubens Paiva, ex-deputado, com pequenas ações contra os militares, ela passa a suportar sua dor em silêncio. Por isso, o pôster de divulgação do filme captura a cena de uma fotografia de família: marido e filhos estão sorrindo, mas Eunice se dispersa. Nesse instante, ela fita os caminhões do exército que passam ao fundo. Seu olhar é introspectivo e aflito. Como responsável pelo cuidado do marido e dos filhos, Eunice teme que a “normalidade” de sua família seja comprometida pela ditadura.

No entanto, é justamente o destroço causado pelo exército, literalmente no seio de seu lar, que a convoca a assumir um papel socialmente ativo. Ela retorna à faculdade e passa a desempenhar um papel importante na luta pelos direitos dos povos indígenas do país. A ditadura arranca o véu da estabilidade familiar, da proteção e do heroísmo masculino, forçando-a a um protagonismo que parecia distante de seu destino inicial.

A história de Eunice não se distancia do Brasil de hoje. O autoritarismo ainda nos ronda e os homens continuam a assumir uma postura paternalista em relação às mulheres. Sim, claro que o sofrimento de Eunice foi causado pela ditadura militar, mas, ao nos contar a perspectiva da esposa e mãe, o filme também evidencia como a dita “proteção” masculina, tantas vezes, condena à ausência de escolha feminina. Para fazer um gancho com a atualidade, basta observarmos o controle sobre os direitos reprodutivos das mulheres. Muitas vezes mulheres são excluídas do direito de intervir, de colocar suas perspectivas à mesa e dizer o óbvio: “querido, eu carrego o peso das suas decisões”. Sim, ainda às custas das mulheres que muitos revolucionários são feitos.

Claro que a história de Eunice Paiva é apenas uma entre as diversas perspectivas femininas possíveis daquele período. Por isso, o filme está sendo tão criticado por apresentar “mais do mesmo”: o sofrimento de uma família branca e rica. Em Ainda Estou Aqui, testemunhamos a ruptura da aparente normalidade de uma família abastada do sul do país. Momentos familiares — danças em grupo, encontros com amigos, copos de whisky e partidas de gamão — são interrompidos pela brutalidade da ditadura.

Sim, para a classe média progressista, a violência do regime era uma novidade, enquanto, para os pobres e negros, ela já era cotidiana. Assassinatos por mãos fardadas, prisões arbitrárias, encarceramento em massa, maternidade solo e a ausência de redes de apoio sempre fizeram parte de suas realidades. Talvez seja por isso que a história dos Paivas provoca tanta comoção, enquanto as histórias daqueles que vivem sob constante tortura não são contadas? É uma possibilidade.

Mas, francamente, o que o filme de Walter Salles nos adverte, ao narrar pelos olhos de Eunice, é precisamente isso: há histórias que, quando finalmente narradas, ampliam nossa compreensão dos acontecimentos. 

Ao mesmo tempo em que abre portas para uma nova perspectiva, o filme também nos deixa evidente o quanto ainda falta conhecer histórias de outras mulheres — negras, pobres, operárias, camponesas, militantes de base e tantas outras — que também enfrentaram a brutalidade do regime. Somente ao contarmos essas histórias seremos capazes de enfraquecer o discurso de que “a ditadura só afetou uma pequena parcela progressista da classe média” e compreender a dimensão concreta do autoritarismo brasileiro. 

Após assistir Ainda Estou Aqui, o que fica é a certeza de que ainda há muitas outras histórias para serem contadas — mulheres de outras classes sociais, regiões, sexualidades e realidades. Dizemos que é preciso “relembrar para não esquecer”, mas precisamos também desafiar o risco da história única, como alerta Chimamanda Ngozi Adichie. Precisamos continuar discutindo e produzindo sobre a ditadura militar brasileira, mas optando por novas perspectivas, por personagens que ainda não foram narradas. Muito além de Eunice, inúmeras pessoas tiveram suas vidas marcadas pelo silêncio imposto pelo autoritarismo e pela violência.

São histórias que ainda aguardam para serem contadas.

*Jornalista e escritora, mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É autora dos livros Ultramar (Editora da União, 2023) e Redemunho (Editora UFPB, 2019).

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