Na semana do Dia do Combate à Intolerância Religiosa, celebrado em 21 de janeiro, última terça-feira, ao menos três episódios de intolerância religiosa contra povos de terreiro de candomblé foram registrados na Região Metropolitana do Recife.
Um dos casos aconteceu no domingo (19) em frente ao quase centenário Terreiro de Xambá, em Olinda. Em dia de solenidade do Toque de Obaluaiê, os frequentadores da casa foram surpreendidos por um grupo de aproximadamente 100 evangélicos da Assembleia de Deus com carro de som, microfone, faixa e instrumentos tentando realizar um culto em frente ao terreiro.
Nesta sexta (24), Pai Ivo, liderança de Xambá, formalizou um Boletim de Ocorrência por conta do episódio. No próximo domingo (26), a partir das 14h, haverá um protesto no local contra a tentativa de intimidação organizado pela Xambá e pelo perfil do Instagram Macumba Ordinária, administrado por Renato Fonseca, que está sendo alvo de ameaça por um grupo de evangélicos também da Assembleia de Deus (saiba mais ao longo da matéria).
“Por volta das 14h do domingo, eu comecei a ouvir uma zuada. Quando eu desci, havia um som tocando coisas evangélicas, eu pensei que eles iam passando. Mas, quando fui na janela olhar melhor, vi que havia um carro de som parado, um cara com um microfone fazendo proselitismo e culto na frente do terreiro”, relata Pai Ivo. Neste mês de janeiro, diversas denominações evangélicas estão em cruzada de evangelização.
“Eu disse ao pastor ‘pastor, o que o senhor está fazendo aqui é intolerância religiosa’. Eles vieram propositalmente, eles sabiam que era dia de toque”, afirma Pai Ivo. Segundo ele, pessoas do grupo disseram palavras ofensivas conta a casa e chamaram sua filha de “Jezebel”. Fundado em 1930, único de nação Xambá na América Latina, localizado no primeiro quilombo urbano do Brasil, o Portão de Gelo, o terreiro é Patrimônio Vivo de Pernambuco.
“Fazemos também um trabalho social aqui e não podemos, de jeito nenhum, nós nem qualquer terreiro de candomblé nesse país, passar por essas intolerâncias religiosas”, diz o babalorixá sobre a busca por justiça. “Você já pensou se eu pegasse o povo do terreiro aqui e chegasse na frente dessa igreja para fazer um xirê ou um toque?”, questiona.
“Eu costumo dizer que os negros não trouxeram religão para o Brasil, o que os negros trouxeram foi a espiritualidade sociocultural. Porque 90% da cultura que tem neste país saiu de dentro do candomblé, o samba, a capoeira, o maculelê, a ciranda, o coco. Então todos esses movimentos estão convidados para o domingo próximo, às 14h, fazermos o movimento e pedir às autoridades sensibilidade de que não só o terreiro xambá como os outros terreiros de candomblé de Pernambuco e outras religiões de matriz não sejam mais importunados. Religião não se discute, se respeita”, publicou Pai Ivo no Instagram do terreiro.
Influenciador e Xambá ameaçados
Outro caso que veio à tona esta semana foram as ameaças sofridas pelo influenciador digital Renato Fonseca, administrador da página Macumba Ordinária no Instagram, com 40 mil seguidores. Os ataques aconteceram depois que um perfil evangélico seguido por mais de um milhão de pessoas publicar um vídeo em que ele denuncia o que aconteceu em Xambá.
O título do vídeo é “Macumbeiro fica revoltado com marcha da igreja no projeto ‘Pernambuco para Cristo’. A postagem recebeu mais de 4,3 mil comentários, entre eles o da missionária Patrícia Macena, do Ibura, dizendo “O terreiro vai fechar em nome de Jesus”. O comentário foi seguido por diversas mensagens de apoio. “É perseguição ou não é?”, questiona Renato.
Depois ele recebeu mensagens privadas ameaçadoras de uma pessoa identificada como Alex Medeiros, dizendo que, no domingo (26), os evangélicos irão novamente para a frente da Xambá: “Vai sacrificar quantas galinhas? Só não suje a rua com oferendas, que domingo a gente vai passar aí de novo e dessa vez vai ser 2x vezes melhor. Com som alto e pregando a palavra. O inferno não tem poder sobre as trevas. Abraços, Jesus te ama. Ah, eu não tenho medo de Exu, Tranca Rua, Preto Velho e esses teus orixás, pode ficar tranquilo”.
Nesta sexta-feira, 24, Alex postou um vídeo de desculpas a Renato. “Eu tive a intenção de defender minha religião e eu reconheci que acabei passando dos limites. Venho aqui pedir perdão, pedir desculpas se eu atingi a honra ou a dignidade de alguém, essa realmente não era minha intenção. Peço aqui desculpas a todos os irmãos de religiões de matriz africana e à comunidade xambá”, diz o trecho inicial do vídeo.
O influenciador fez um Boletim de Ocorrência nesta sexta (24) contra Alex Medeiros, a missionária Patrícia Macena e a Assembleia de Deus e disse que o pedido de desculpas não muda sua conduta nem o protesto agendado para domingo (26).
A expectativa dele, porém, é baixa sobre o que será feito a partir do BO. “Minha expectativa é zero, porque a gente sabe como funciona a polícia, como funciona a Justiça no Brasil. E ainda mais quando se trata de uma pessoa que é macumbeira e preta. A Justiça no Brasil é feita para incriminar o preto, não para defender o preto”, lamenta.
Para Renato, essas ações estão sendo orquestradas com o intuito de deslegitimar o dia 21 de janeiro, data do Combate à Intolerância Religiosa. “Essas pessoas se sentem tão à vontade em sair da sua casa, em sair das suas igrejas, para ir fazer esse tipo de ato na frente de terreiros, justamente porque o nosso povo tem a cultura de ser pacífico”, comenta. “Eu acho que está na hora de o povo de terreiro dar um basta”, protesta.
“Eu tomei todas as medidas cabíveis, fui na delegacia, como manda a cartilha. Mas não que eu ache que vai acontecer alguma coisa através desse BO. Acredito que vai acontecer alguma coisa através do ato que vamos fazer no domingo, às 16h. Será um recado muito forte para o governo e para as igrejas”, avalia, lembrando que os grupos de evangélicos não só simplesmente passaram na rua onde ficam os terreiros, mas pararam para ofender e fazer proselitismo. “Não vamos recuar, vamos defender o nosso direito”.
O terceiro caso que chegou ao conhecimento da reportagem aconteceu em Prazeres, Jaboatão dos Guararapes, no terreiro de Pai Dicinho de Oxalá. O espaço foi alvo dos evangélicos numa situação bastante semelhante à da Xambá, enquanto a casa se preparava para realizar a tradicional Festa das Águas para Oxalá. Um grupo concentrou-se em frente ao local proferindo ofensas e palavrões e dizendo que os membros do terreiro iriam “arder no fogo do inferno”.
O terreiro publicou uma nota de repúdio nesta quinta (23) em que reafirma “o compromisso com os princípios de justiça, respeito e dignidade, que são valores fundamentais e inegociáveis”.
“A Justiça lida da pior forma possível com o racismo religioso”
Em entrevista à Marco Zero, a professora de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Ciani Neves falou sobre o Poder Judiciário brasileiro em casos de racismo e intolerância religiosa. Ela é pesquisadora em direito e relações raciais, coordenadora do Projeto de Pesquisa e Extensão PEJI (Promoção da Educação e Justiça para a Igualdade Racial), que realiza o mapeamento de casos judicializados de racismo, oferece serviço de orientação para vítimas de racismo religioso e oferece orientação e assessoria gratuita na elaboração de estatutos para os terreiros.
Ciani lembrou que “tudo isso é a comprovação de que nós estamos em disputa por um projeto de mundo, que se encontra amplamente ameaçado pelo fundamentalismo religioso e se irradia para todos os espaços do Estado. Isso implica em invadir o sistema de Justiça, o Poder Legislativo, o Poder Executivo, o Ministério Público, as escolas e universidades, que são espaços de formação e que hoje a gente está em disputa contra o obscurantismo”.
Confira os principais techos da entrevista:
Marco Zero – Como a Justiça brasileira lida com os casos de racismo e intolerância religiosa? Esses casos chegam ao judiciário?
Ciani Neves – O sistema de Justiça brasileiro lida da pior forma possível, não só em se tratando de uma questão de racismo religioso, mas de um sistema estatal estruturado nas bases do racismo para negar a humanidade da população negra no país. O racismo desumaniza. Então, tudo que está relacionado à gente preta, à população negra é objeto de desumanização. Isso se aplica também às religiões de matriz africana.
O que chega à justiça são alguns elementos que a gente precisa considerar. O primeiro deles é um desafio imenso que temos quando lidamos com questões que dizem respeito a problemas estruturais no Brasil, como o enfrentamento ao racismo. São as portas de entrada para o sistema de justiça.
A gente tem uma dificuldade imensa nas delegacias porque a gente tem, não só a formação — e aí essa não é uma característica só das delegacias, mas de todos os serviços do sistema de Justiça — que é amplamente racista para todos os seus quadros.
Então, mesmo que a gente diga que há uma abordagem de direitos humanos nos cursos de capacitação, e aí dentro dessa abordagem tem uma abordagem de raça e de gênero, mas são elementos pontuais que são utilizados nesse processo formativo e que aí você vai disputar com um período imenso de formação desse sujeito. Não só no momento do ingresso dele no serviço público, como dos elementos que ele vai associando no seu processo de socialização.
Temos uma sociedade que é racista, amplamente racista, estruturada no racismo e, aí quando a gente se depara com isso, no momento que chega à delegacia, já começa a primeira grande dificuldade, porque isso vai depender de quem é a pessoa integrante da religião de matriz africana. Se a gente se depara com uma pessoa negra, ela vai ser tratada de uma forma diferente de uma pessoa branca. É importante a gente dizer que, quando a gente fala de religiões de matriz africana e de matriz afro-indígena, estamos
falando de religiões que têm essa matriz, mas também que hoje são frequentadas por pessoas brancas. É preciso dizer que, em decorrência do elemento religioso, essas pessoas sofrem racismo religioso — não estou dizendo que uma pessoa branca sofra racismo no Brasil, estou dizendo que, se ela é adepta de uma religião de matriz africana ou de matriz afro-indígena, vai sofrer racismo religioso.
Na maior parte das vezes, vai se entender, ainda que a lei 9.459 fale da intolerância religiosa e ainda que a lei 14.532 trate da injúria racial e do racismo religioso, por parte do agente de polícia, o delegado de polícia como briga de vizinho ou como vias de fato. Então temos um processo de omissão do Estado quando se trata de proteção dos povos e comunidades de matriz africana e de matriz afro indígena. Atrelado a esse processo, temos a omissão do Estado na hora de proteger esse segmento, um processo de criminalização que tem avançado em larga escala contra os terreiros.
É preciso haver delegacias especializadas?
Ciani – Se tiver, é viável porque sabemos que uma delegacia especializada em determinada violação de direitos pode ter uma prática menos danosa do que a delegacia comum. Mas, se não existe esse serviço, é obrigação da delegacia comum acolher a ocorrência e fazer o registro, para que a vítima não se sinta novamente vitimizada.
É importante que ocorra porque a gente trata da perspectiva da política pública de ação afirmativa. E aí quando estamos falando de povos e comunidades expostos aos efeitos do racismo cotidiano, precisamos considerar a necessidade de viabilizar toda sorte de política pública de ação afirmativa que possa acolher esses sujeitos.
Mas, na inexistência dela, não há justificativa para o não registro da ocorrência, para o não acompanhamento, para a não investigação que não seja o que a gente pode chamar de omissão e conivência com as violações de direitos.
Qual é a diferença entre racismo e intolerância religiosa?
Ciani – Intolerância religiosa é uma prática que se dá motivada pelo preconceito, pelo desconhecimento, pela ignorância e que ela está sujeita a todo e qualquer indivíduo em decorrência do segmento religioso que ele professe. São práticas de desrespeito e discriminação, mas que não necessariamente vão ter a motivação da destruição.
O racismo não. O racismo é projeto de dominação e exploração, uma ferramenta de poder, um sistema que tem como perspectiva a dominação dos indivíduos a partir da sua desumanização, que tem como perspectiva destruir todos os elementos que remetam àquela existência, àquela identidade.
O racismo religioso está atrelado a essa perspectiva, sendo uma das ferramentas desse sistema de dominação, atrelado ao projeto de destruir qualquer referência de saberes e formas de vida negras e indígenas. Essa relação é o que vai estar configurado, que vai causar danos, violação de direitos de forma mais ampla, expulsão dos territórios e segregação.
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