Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a Newsletter da Pública, enviada sempre às sextas-feiras, 8h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.
Conheci Eunice Facciolla Paiva como mãe de um companheiro de juventude, o hoje escritor Marcelo Paiva, no final da década de 1970. Para nós, ignorantes de tudo, ela era apenas a “mãe do amigo”, aquela que recebia os adolescentes e jovens que invadiam seu apartamento com tolerância educada, um tantinho severa, a demarcar limites necessários naquela idade em que somos todos meio sem noção.
Não tínhamos a menor ideia da importância daquela mulher nem da dimensão do sofrimento da família duramente atingida pela ditadura. Fazer drama, mesmo diante de tragédias reais, nunca foi a cara dos Facciolla Paiva, como eu perceberia de forma contundente depois. Embora a gente soubesse superficialmente que o pai do nosso amigo era um “desaparecido político”, o próprio Marcelo não costumava falar no assunto.
E olha que ele estava longe de fazer o tipo calado. Extrovertido, piadista com predileção pelo humor ácido, sem nenhuma timidez para mostrar suas composições no violão ou paquerar as meninas, Marcelo não destoava da inconsequência juvenil da molecada de 18,19 anos que extrapolava nas festas em sua casa de estudante em Campinas (já leu Feliz ano velho?) e frequentava, com mais moderação, o apartamento da família.
Talvez por isso o belo filme de Walter Salles tenha me atingido com tanta força aos 65 anos, em uma tarde de dezembro de 2024, apesar de a esta altura conhecer bem a história de Rubens Paiva, cruelmente assassinado pela ditadura, e um pouco da linda biografia de Eunice, através do livro de autoria de Marcelo, publicado em 2015, que deu origem ao filme.
Levada pelas lentes de Salles para a casa da família de Marcelo no Rio de Janeiro, revivendo o tempo em que ainda não nos conhecíamos, mas compartilhamos como crianças da mesma geração, senti na carne a perda gigantesca e brutal vivida pelo meu amigo, por suas irmãs e por sua mãe, que só pode se declarar oficialmente viúva 25 anos depois da morte do marido. É esta a magia do cinema: nos transportar.
Tudo tão parecido, mas tão mais alegre. Tudo tão parecido, mas tão mais doído.
Tive vontade de voltar de verdade no tempo e pedir que o Marcelo garoto parasse um pouco de rir e brincar para me contar o que sentia de verdade enquanto a gente passava por cima de tantos sentimentos, talvez para poder viver outros.
A essa família e a toda equipe de Ainda estou aqui, com um carinho especial pela gloriosa Fernanda, absolutamente fiel a Eunice que conheci, e também àquela que eu desconhecia, agradeço do fundo do coração a alegria e o orgulho que nós, brasileiros, sentimos agora.
Sim, bem agora, quando a posse de Donald Trump, simbolizada pela saudação nazista de Elon Musk, nos remete à tristeza, desesperança e injustiça dos crimes da ditadura, que estupidamente tentamos apagar. Melhor dizendo, aos crimes da Guerra Fria, como frisou Fernanda em suas entrevistas nos Estados Unidos, quando o país de Trump semeou ditaduras, violência e dor na América Latina.
Para mim, o mais bonito da história de superação de Eunice, Marcelo, Veroca e suas irmãs – e eu nem sabia como a Eliana tinha sofrido tanto com sua prisão aos 15 anos de idade – é que ela não é um conto meritocrático de uma pessoa, mas fruto viçoso de uma luta cotidiana e solidária, sem nenhuma estridência, calcada na humanidade que nos habita.
É esse o Brasil que pode iluminar o mundo.
Tags:
Direitos Humanos | Ditadura Militar | Política | Português