Ao lado de Fernanda Montenegro, ator de Perus conquista espaço em ‘Ainda estou aqui’, sucesso de bilheteria
“Eu recebi uma mensagem falando: ‘queria te fazer um convite para participar de uma cena com a Fernanda Montenegro. Você topa?’ Eu pensei: isso é golpe!”, lembra, rindo, o ator Fagundes Emanuel Ferreira, 30, do Recanto dos Humildes, em Perus, zona norte da capital.
Felizmente, não era golpe, mas uma mensagem da produtora de elenco do filme “Ainda estou aqui”, sucesso de bilheteria nacional que ontem (5) consagrou Fernanda Torres como a melhor atriz na categoria Drama no Globo de Ouro, uma das principais premiações do cinema internacional. O longa ainda concorreu como melhor filme em língua não inglesa do prêmio e aguarda a indicação para concorrer a melhor filme estrangeiro no Oscar de 2025.
No drama, dirigido por Walter Salles, Fagundes vive um dos netos da advogada Eunice Paiva, protagonista encenada por Fernanda Torres, filha de Fernanda Montenegro, que também dá vida a Eunice mais velha. O enredo conta a história da advogada, esposa do ex-deputado Rubens Paiva, que foi torturado e morto pela ditadura militar.
“Me senti privilegiado e sortudo de presenciar o reencontro de Walter Salles com a Fernanda Montenegro desde o ‘Central do Brasil’. Sales é uma pessoa extremamente doce, sensível, muito alegre e que deixa o ator ter o tempo dele. Foi uma grande aula ver os dois trabalhando ali do meu lado”.
O filme Central do Brasil, de 1998, também foi dirigido por Walter Salles e concorreu ao Oscar em duas categorias: melhor atriz, com Fernanda Montenegro no papel de Dora, e melhor filme estrangeiro.
No dia da pré-estreia, a ansiedade era o principal sentimento do ator. Assistir a história ao lado de colegas que acompanha nas telas e admira na vida real foi um grande privilégio. “Junto com todo mundo estavam Selton Mello e Fernanda Torres. Isso para mim já foi uma das coisas mais incríveis daquele momento”. Em 2024, o filme venceu o Festival de Veneza como melhor roteiro.
Para Fagundes, o fato de um filme que carrega uma história tão forte do Brasil chegar a uma das maiores premiações do cinema do mundo é extremamente importante, assim como tem sido sua repercussão.
“Espero que esse alcance também chegue nos produtores de elenco, diretores, roteiristas e que eu possa continuar, como artista periférico, esse sonho de ter trabalho remunerado no audiovisual”.
Arte imita (parte) da vida: Ditadura militar e periferias
O filme conta a história de Eunice na luta por justiça após o desaparecimento do marido, Rubens Paiva, levado pelos militares durante a ditadura civil-militar (1964 a 1985). O enredo é uma adaptação da história real registrada no livro também chamado “Ainda Estou Aqui”, escrito por Marcelo Paiva, filho de Eunice e Rubens. A história se passa na zona sul do Rio de Janeiro e em áreas nobres de São Paulo.
Bem longe desse cenário, as periferias Região Metropolitana também foram gravemente impactadas pela ditadura. Relatórios da Comissão da Verdade, que funcionou entre 2012 e 2014, mostram que presos políticos foram levados para serem torturados e mortos em cemitérios das periferias como indigentes.
“Em Perus tivemos uma vala comum, de presos e desaparecidos políticos da ditadura e a história do filme é a história de um desaparecido político, o Rubens Paiva, preso no Rio de Janeiro. Ninguém sabe para onde ele foi levado”, lembra Fagundes.
Para o ator, é extremamente importante ter uma produção nacional centrada na história de uma mulher. “Ela [Eunice] é uma heroína, que nunca deixou de pensar na memória do ex-marido. Depois ainda foi uma grande ativista para os direitos indígenas”.
Ele lembra que a história retratada nas telonas é de uma família de classe média alta, com membros muito conhecidos e influentes.
“Falta muito retratar a memória da periferia nos filmes […] Foi uma crueldade sem limites o modo como a ditadura atravessou e atravessa até hoje as pessoas da periferia”.
‘Ainda estou aqui’, em Perus
Nascido no município de Taguatinga, no Norte de Pernambuco, Fagundes veio para São Paulo ainda criança e morou em Caieiras, na Grande São Paulo, até os 6 anos. Depois disso, mudou-se para Recanto dos Humildes com a família, o que considera a “sorte de ter aterrizado neste país Perus”, um polo de resistência e cultura para ele.
Aos 13 anos, Fagundes começou a frequentar aulas de teatro no Centro Educacional Unificado e no Teatro Vocacional da Prefeitura de São Paulo. Nos locais, conheceu o grupo teatral Pandora, que existe há 20 anos, e ajudou na elaboração do espetáculo “A revolta de Perus”.
“[A peça] foi fruto de uma pesquisa sobre a história do bairro. Um dos temas foi a vala comum [usada por militares na ditadura para enterrar perseguimos políticos como indigentes], as ações do Sindicato dos Trabalhadores de Cimento, Cal e Gesso, a história do lixão e os acidentes de trens”, enumera, sobre as diversas memórias do distrito.
A primeira fábrica de cimento, cal e gesso do Brasil foi inaugurada em 1926 nas proximidades da estrada de ferro Perus-Pirapora. Os trabalhadores organizaram diversos movimentos de luta por melhores condições de vida, por meio do Sindicato dos Trabalhadores de Cimento, Cal e Gesso.
Fonte: Memorial da Resistência
Em paralelo, ingressou aos 18 anos na Companhia de Teatro São Jorge, onde atua até hoje. Também passou pela Companhia do Feijão e pelo Quilombaque, grupo teatral de Perus importante na formação política da região. Foi da terceira turma de humor da SP Escola de Teatro e atuou no Centro de Pesquisa Teatral, no Sesc Consolação.
Na TV, estreou na novela Geração Brasil aos 20 anos, em 2014. Viveu o personagem Mosca, do núcleo cômico da novela, e levou do trabalho diversas amizades que o ajudaram a resgatar sua origem nordestina e a ganhar força no universo desafiador das artes.
O bom filho à quebrada torna
Se hoje Fagundes está nas telonas, ele acredita que deve a conquista também ao distrito de Perus que “foi como uma mãe nesse percurso artístico”.
Tanto que considera o personagem Murilo, protagonista do longa “Lua em Sagitário”, de 2016, um dos principais trabalhos da sua carreira. O filme conta a história do jovem, que vive em um assentamento do Movimento Sem Terra e trabalha em uma cooperativa com a mãe. A estréia foi no CEU Perus, com a sala de cinema lotada por familiares e amigos emocionados.
“Eu achei lindo! No final, meu pai disse: ‘É sua história no filme’. Ele fez um link entre o jovem da ocupação rural do filme e a ocupação urbana onde moramos. Desde esse dia, sempre ressalto que eu cresci em uma ocupação”.
A visibilidade dos trabalhos não ameniza a falta de oportunidades para pessoas periféricas no meio artístico. Contudo, ela ajuda a abrir portas para que outros jovens das quebradas possam sonhar com a carreira.
“O grande sonho do artista brasileiro que não é herdeiro é sempre continuar trabalhando em projetos legais que façam sentido com seu discurso pessoal”.
Jéssica Moreira, ex correspondente de Perus colaborou com esta reportagem
Esta reportagem foi produzida com apoio da Report For The World.
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