O que você precisa saber antes da audiência pública sobre a concessão parcial da Compesa
Você sabia que uma parte importante da Compesa pode ser concedida à iniciativa privada ainda neste ano? É uma medida que vai ter impacto na vida dos pernambucanos e que deve perdurar por 35 anos, pelo menos. A concessão parcial da empresa pública de saneamento e distribuição de água está sendo modelada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e vai contar com apenas uma única audiência pública no Recife, que já acontece nesta quarta-feira, dia 15 de janeiro, na sede da Fiepe (Av. Cruz Cabugá, 767, Santo Amaro), a partir das 9h, sem que a sociedade civil nem a academia estejam mobilizadas para discutir os impactos dessa concessão.
A Marco Zero ouviu três especialistas em saneamento, com décadas de experiência, e eles foram unânimes em apontar que o modelo escolhido para a Compesa é um “desastre”. Há vários fatores que embasam essas opiniões.
Hoje, a Compesa – uma sociedade de economia mista que tem o estado como maior acionista – trabalha na captação de água, tratamento, distribuição e processamento do esgoto. O que o Governo do Estado quer é ceder a parte de distribuição de água e coleta de esgoto para a iniciativa privada em um contrato longo, de 35 anos, para receber, no início do contrato, cerca de R$ 18,9 bilhões. A ideia é abastecer os cofres do Estado e alcançar a meta de universalização dos serviços de distribuição de água e coleta de esgoto até 2033, como está previsto no Marco Legal do Saneamento.
Atualmente os índices de atendimento de água e esgoto em Pernambuco são de 83,6% e 30,8%, respectivamente, enquanto esses indicadores para o Brasil são de 84,2% e 55,8%.
O Marco Legal do Saneamento pretende a universalização dos serviços de saneamento básico até 2033: 99% dos brasileiros deverão contar com água tratada nas torneiras e 90% deverão ter acesso à coleta e ao tratamento de esgotamento sanitário.
Para os especialistas, a concessão parcial é o pior modelo possível: com muito serviço ainda a ser feito para a produção e captação da água, secas prolongadas e 1,6 milhão de pernambucanos no CadÚnico, privatizar a parte de distribuição não só não garante a universalização do serviço, como pode aumentar a conta de água dos pernambucanos.
Para a concessão parcial, o BNDES e a Compesa dividiram Pernambuco em duas Microrregiões de Água e Esgoto: a MRAE1 formada por 24 municípios dos sertões Central, do Araripe e do São Francisco e a MRAE2 que inclui 160 municípios, indo da Região Metropolitana do Recife (RMR) até o Sertão do Pajeú, e o distrito de Fernando de Noronha. Na primeira, a concessionária vencedora deve investir R$ 2,8 bilhões e, na segunda, R$ 16,1 bilhões. Na RMR, o serviço de coleta de esgoto já é explorado por uma Parceria Público-Privada (PPP) com a empresa BRK, e não haverá mudanças, por ora.
No modelo proposto pelo BNDES, a Compesa vai seguir sendo responsável pela captação e tratamento da água, a parte mais custosa. “O Governo atual quer essa privatização porque diz que a distribuição é ruim. De fato, é ruim, mas a distribuição no setor de saneamento daqui de Pernambuco é a parte mais fácil. E a Compensa nunca aprendeu a fazer. Por que nunca aprendeu? Porque ela nunca conseguiu fazer o que é mais difícil: ter água para toda a população. Ter água todos os dias, na pressão necessária, no volume necessário. A situação da Zona da Mata de Pernambuco é uma coisa, mas quando você entra por Agreste, por Sertão, a situação de água é dificílima. O Agreste tem níveis de água de deserto”, diz o engenheiro civil e professor da Universidade Federal de Pernambuco Ronald Vasconcelos.
Ele lembra que nas últimas quatro décadas, principalmente nos últimos 20 anos, o estado tem investido em adutoras – tubulação de grande porte destinada a conduzir a água da estação de tratamento aos reservatórios de distribuição. É uma das partes mais caras do processo de captação. “A transposição do rio São Francisco foi muito importante também, porque Pernambuco não tem água de qualidade no Agreste, quase não tem água subterrânea também. A Adutora do Agreste é outra obra muito importante e custosa, que está sendo feita pela Compesa”, diz Vasconcelos.
Os custos de captação de água devem se elevar ainda mais nesses 35 anos de concessão. No dia 03 de janeiro a Compesa anunciou um rodízio emergencial no abastecimento de água, por conta da escassez de chuvas. “Com as mudanças climáticas, a captação de água vai ficar ainda mais complicada, por conta da imprevisibilidade. Ora você vai ter água demais, ora você vai ter de menos. O ônus das mudanças climáticas vai ficar todo com a Compesa, que continua responsável pela captação”, avalia Ronald.
Para o engenheiro Marcos Montenegro, também especialista em saneamento e do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), não há razões financeiras para a Compesa fazer a concessão parcial. “A Compesa é uma empresa lucrativa, pode pegar financiamento para melhorar a distribuição. Por que não faz isso? Por que não lança debêntures? Há alternativas intermediárias ao invés de fazer a concessão de água e esgoto”, afirma.
A escolha por concessão parcial e não concessão total é uma exigência do mercado, aponta Montenegro. “Porque as concessionárias privadas não querem a parte de produção, querem deixar o pepino da produção com o estado. Lamentavelmente, há um impacto muito grande nos direitos à água e ao esgotamento sanitário da população mais pobre, que é quem não tem o serviço”, afirma.
Para o pesquisador do Observatório das Metrópoles Arnaldo Souza, o modelo de concessão parcial também é um erro, já que Pernambuco está muito longe da universalização dos serviços de saneamento. “Há algumas experiências de concessão no Sul do país que se demonstraram muito positivas porque o local que se concedeu para a iniciativa privada já dispunha de toda uma infraestrutura, ou seja, uma rede prévia, estabelecida, feita pelo estado, e que se passou para a mão do setor privado gerir”, diz.
“Agora, construir essas infraestruturas é algo muito caro, que não é de interesse para o mercado, porque o retorno é muito baixo. O mercado visa o lucro. O que tem de errado é o estado não enxergar as assimetrias que existem e conceder um serviço tão essencial diretamente para a iniciativa privada, sem antes estabelecer as bases para que a iniciativa privada possa expandir, possa operar de forma justa e igualitária para a sociedade”, critica Arnaldo, que é doutor em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Outro ponto importante, e que tem grande impacto para os consumidores, é que a empresa vencedora da concessão será a que oferecer a menor tarifa com um desconto de até 5%. Depois, vale a empresa que oferecer o maior valor de outorga, ou seja, a que pagar mais para explorar o serviço. “Na prática, vai vencer a empresa que oferecer mais dinheiro. É evidente que esse dinheiro da tarifa vai voltar para a empresa que ganhar a concessão, porque a empresa não vai querer prejuízo, ela vai cobrar. De onde é que ela vai cobrar isso? Da tarifa”, avalia Montenegro.
A concessão deve durar 35 anos. Nos documentos disponibilizados ao público, não informa se, ao fim do contrato, a empresa terá que fazer uma reposição dos ativos. Assim, pode ser que ao final do contrato o governo receba uma infraestrutura sucateada, necessitando de reparos e substituições.
O saneamento e a distribuição de água no Brasil são marcados por desigualdades. O Banco Nacional de Habitação (BNH) começou na década de 1960 a financiar saneamento, mas privilegiou concentrar recursos e investimentos em setores específicos. “Frequentemente no sul do país e no abastecimento de água, criando grandes distorções nas redes de atendimento do Norte, Nordeste e até mesmo no Centro-Oeste. E isso foi se reproduzindo ao longo do tempo”, explica Arnaldo Souza.
Com o declínio econômico dos anos 1980, as linhas de financiamento secaram para o setor. “A década de 1990 foi sofrível porque, ao mesmo tempo em que a Constituição abria vanguarda para as políticas essenciais que simulavam um estado de bem-estar social, tivemos que lidar com um plano de reforma do Estado que preconizava o consenso de Washington, ou seja, a liberalização da economia, a abertura de mercado, toda aquela conjuntura neoliberal que ascendia na América Latina de forma muito intensa”, diz Arnaldo.
Houve um curto período de avanços, com as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) nos governos do PT. “Apesar de ter prestigiado o investimento público, esses governos também não fecharam as portas para o avanço neoliberal. Temos como exemplos a lei das PPPs, que foi renovada durante o governo Lula, e o Marco Legal do Saneamento de 2007 que também abria espaço para a iniciativa privada”, acrescenta o especialista.
Em 2018, o governo Temer ampliou espaço para o setor privado, com o novo Marco Legal do Saneamento, que estabelece atingir a universalização dos serviços de água e saneamento em 2033. “O Brasil é um país atravessado pela pobreza, pela precariedade de infraestrutura, pela carência de diversas naturezas e, paulatinamente, há promessas reiteradas de universalização”, diz Marcos Montenegro.
“Não acredito que essas metas estipuladas até 2033 serão alcançadas pela mão do mercado. Ao contrário disso, eu acho que somente com intervenção massiva do Estado, com olhar atento do Estado para isso, é que esse setor vai conseguir alcançar o êxito de universalização”, completa.
Iniciativa privada é a melhor solução?
O professor Ronald Vasconcelos aponta que o BNDES não tem a expertise necessária para fazer o projeto de concessão. A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a maior universidade do estado, por exemplo, não foi chamada para participar da série de estudos que o banco está fazendo para oferecer à iniciativa privada partes inteiras ou pedaços de companhias de abastecimento de água de várias regiões do país.
A concessão da empresa pública de Sergipe causou bastante discussão no ano passado. Na época, Marcos Montenegro fez uma detalhada análise dos documentos do edital de concessão. Encontrou em partes dos documentos o nome “Rio de Janeiro”, ao invés de “Sergipe”, entre outros erros. “Parecia que faziam um ‘copia e cola’ entre os editais, sem estudar profundamente caso a caso. Havia problemas seríssimos de várias naturezas. Fizemos um resumo e apresentamos para 13 professores doutores de universidades brasileiras que subscreveram o documento, que mandamos para o BNDES, e o Governo do Estado. Sabe o que aconteceu? Nada”, lamenta. “Nenhuma das nossas propostas foram incorporadas ao edital”.
Em vídeo divulgado nas redes sociais, o deputado federal Pedro Campos (PSB) criticou os documentos disponibilizados sobre a concessão. Um dos pontos abordados pelo deputado – que é engenheiro concursado da Compesa e adversário político do governo Raquel Lyra (PSDB) – é o índice de intermitência de 67%. “Isso vai permitir que falte água, uma vez por mês, em 67% das casas atendidas pelo serviço. E só vai contar como falta de água depois de seis horas sem o serviço”, afirmou o deputado no vídeo. Só que a apuração desse percentual será apenas anual, o que dificulta a fiscalização e cobrança.
Pelo cronograma divulgado pelo BNDES, serão realizadas mais três audiências públicas, além da marcada para esta quarta-feira. São nas cidades de Caruaru, na próxima quinta-feira (16), Salgueiro (21) e Petrolina (22), Vale lembrar que não há nenhuma obrigação para que as opiniões da população sejam incorporadas ao edital. A consulta pública dos documentos está disponível até 7 de fevereiro no site da Secretaria de Recursos Hídricos e Saneamento de Pernambuco (SRHS-PE). Também é possível enviar contribuições para o e-mail dialogopublico.saneamento@sepe.pe.gov.br.
Na pesquisa do seu doutorado, em 2009, Ronald Vasconcelos pesquisou os modelos de financiamento para os serviços de água e esgoto. “Naquela época, a universalização dos serviços no Brasil em 20 anos iria custar 178 bilhões. Hoje é entre R$ 500 bilhões a R$ 700 bilhões”, calcula. “E desde a década de 1960 até 2009 em nenhum ano foi atingido um valor que fosse possível, nem nos melhores anos, só com recurso público, promover a universalização dos serviços”, aponta.
“Existiam, como existem ainda hoje, diversas possibilidades de você promover a participação do setor privado. Pode ser a mais radical que é a concessão plena – como foi feito com a Celpe – até levar a empresa a bolsa de valores. Tudo isso tem implicações”, diz. Na época, o professor da UFPE apontou que as melhores opções eram as parcerias público-privadas, as PPPs, e a bolsa de valores. “Em ambos os modelos o controle das operações permanece com o estado”, diz.
Em Pernambuco, há uma PPP desde julho de 2013 na Região Metropolitana do Recife e Goiânia, por meio do Programa Cidade Saneada, com a empresa BRK. Para Marcos Montenegro, é um exemplo de que as PPPs também não estão dando certo para o setor.
“Já temos mais de 12 anos de atuação da BRK no Grande Recife e Goiana. Apesar do período do contrato ser de 35 anos, uma das metas iniciais era de que neste ano, em 2025, a universalização pudesse ser atingida. O índice de atendimento de esgoto nessas localidades, contudo, passou somente de 30% para 38%, um avanço de apenas oito pontos percentuais. É uma mistificação imaginar que é com a privatização por meio da concessão que se vai conseguir a universalização. Se isso fosse verdade, a BRK teria conseguido atingir, se não as metas, ter chegado perto da meta. Está muito longe”, critica.
Em nota divulgada no mês passado, a BRK afirma que a taxa de cobertura chegou a 42,8 % em 2023, e que o “objetivo principal do projeto é garantir o índice de cobertura de 90% até 2037, beneficiando cerca de seis milhões de pessoas na área atendida. Esta iniciativa do Governo de Pernambuco é uma das maiores PPPs da área de saneamento do Brasil. Até o momento, já foram implantados 11 novos sistemas de esgotamento sanitário nas cidades de São Lourenço da Mata, Recife, Paulista, Olinda, Cabo de Santo Agostinho, Ipojuca, Goiana, Moreno e Jaboatão dos Guararapes”.
Montenegro cita ainda a disparidade de salários entre diretores da Compesa e da BRK. “Um diretor da Compesa ganha R$ 22 mil. Na BRK, a média de remuneração mensal é 300 mil reais. Quem paga esses altos salários é o consumidor”, diz.
No final do ano passado foi formada uma frente parlamentar na Assembleia Legislativa de Pernambuco para acompanhar a concessão parcial da Compesa. Para Arnaldo Souza é necessário que a sociedade se mobilize para acompanhar esse processo. “Para o mercado atender a contento todas as demandas, a sociedade civil tem que estar atuante, ativa e de forma perene, porque sabemos que existe uma condensação de forças que estão guiando esse trâmite de privatização da gestão do saneamento. Sem o olhar atento da sociedade, esses mecanismos operados pelo mercado e pelo Estado vão convergir em direção aos benefícios para o mercado e para o estado. Geralmente, o detrimento é da população mais pobre, mais carente”, diz. “Para o meu desgosto, eu tenho visto pouca mobilização. A sociedade ainda está alheia, acho que não se atentou ainda para o risco que isso traz para o abastecimento de água, inclusive pelo aumento de tarifas”, alerta.
O post O que você precisa saber antes da audiência pública sobre a concessão parcial da Compesa apareceu primeiro em Marco Zero Conteúdo.