Novas construções do Recife não precisarão mais ter vagas de estacionamento, sejam residências, imóveis comerciais ou de uso misto. A mudança, prevista no Plano Diretor sancionado pelo prefeito João Campos (PSB) em 2021, está entre os artigos da nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS), aprovada nesta terça-feira (23) na Câmara dos Vereadores do Recife. Em uma rara convergência de opiniões, a medida agradou ativistas, gestores, urbanistas e o mercado imobiliário, ainda que por razões diferentes.
Pela Lei de Uso e Ocupação do Solo anterior, de 1996, era obrigatório que cada apartamento tivesse uma vaga de estacionamento de 25 metros quadrados o que inclui o tamanho da vaga (2,20m X 5,50m) e espaço para manobra e circulação. À medida que a metragem do imóvel ia aumentando, a lei exigia mais vagas para cada apartamento ou sala comercial.
O arquiteto e urbanista Milton Botler, que já foi presidente do Instituto Pelópidas Silveira, diz que a mudança em relação aos estacionamentos privados é uma tendência das cidades, em uma tentativa de desincentivar o uso de carro particular e de baratear as construções.
Quando se implantou, em 2000, o TransMilênio (sistema de transporte integrado) em Bogotá, o debate foi que seria necessário tirar muita vaga de carro para liberar a infraestrutura para o transporte público. E o prefeito de Bogotá à época disse: vaga é um problema privado, não é um problema público. Foi aí que o resto do Brasil começou a prestar atenção de que vaga de estacionamento não compete ao poder público. Se o empreendedor quiser colocar, ele coloca. Se não quiser, não coloca, diz o urbanista, que coordenou em 2011 o primeiro Plano de Mobilidade do Recife.
“Fica dispensado da exigência mínima de vagas de estacionamento qualquer tipo de empreendimento de uso habitacional, não habitacional e misto em todas as zonas e setores da cidade.”
O urbanista afirma que o que mais atrai o uso do carro é ter onde estacionar. Se houver limitação de estacionamento, as pessoas buscarão outras formas de deslocamento. A obrigatoriedade de ter vagas é uma retórica que se provou extremamente ineficiente e falsa”, diz.
Para Botler, não tem como uma cidade querer ser sustentável se ainda privilegia o espaço para carro privado. Essa mesma medida de não precisar de vaga de estacionamento já está em uso em Petrolina desde o Plano Diretor de 2018. Tentamos colocar no Plano Diretor de Garanhuns também, mas só conseguimos uma redução do número de vagas, conta Botler, que já fez consultoria para vários municípios. Não houve reclamações dos moradores nesses municípios”, pontua.
A arquiteta e urbanista Yara Baiardi, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), vê o novo artigo da LPUOS como um avanço, mas ainda extremamente aquém dos imensos desafios que a mobilidade do Recife enfrenta. A questão cultural do automóvel não tem a ver só com a cidade do Recife. É da sociedade que vivemos, muito influenciada pela norte-americana, que é muito focada no automóvel e que destruiu as cidades brasileiras, critica.
Yara Baiardi cita como um bom exemplo de áreas térreas a parte mais antiga do Bairro do Recife, construída antes da invenção do automóvel. Em termos de arquitetura e urbanismo, é um dos melhores bairros da cidade. Porque as ruas são estreitas, as quadras são curtas, mesmo sendo uma área portuária. Há uma riqueza urbana e não há estacionamentos no térreo. Em outros bairros, acabou-se o térreo da cidade: é um térreo murado e, atrás do muro, pisos de garagem. O térreo foi completamente empobrecido. Se você pega a arquitetura do Recife Antigo, hoje está lá meio abandonado, mas é um térreo que tem uma fachada, que tem uma porta, que tem algum diálogo com a cidade, observa.
No Bairro do Recife, térreos dos prédios dialogam com a cidade.
Inês Campelo/MZYara defende, assim como Botler, que para que o artigo da lei tivesse alguma serventia a mais deveria estabelecer um limite máximo de vagas por empreendimento. Essa desobrigação de número mínimo de vagas vai melhorar a mobilidade do Recife? Não. Porque não é uma lei, nem um artigo que vai mudar. É um conjunto de ações, comenta ela, que afirma que a única saída para o trânsito infernal do Recife é o investimento em transporte público. Só que para fazer isso tem que tirar faixas de automóvel. Infelizmente, a sociedade brasileira acha que ter carro é status e expandir a cidade é a melhor coisa”, lamenta.
Também professora da UFPE, Norma Lacerda critica que áreas nobres da cidade sejam usadas para estacionamento de carros. Na beira do Capibaribe, no Bairro do Recife, por exemplo, os estacionamentos da própria prefeitura e de tribunais ocupam terrenos voltados para a frente dágua. É um absurdo, diz ela, que vê com apreensão a falta de fiscalização da prefeitura em relação aos carros estacionados desordenadamente em ruas públicas.
Milton Botler destaca que a prefeitura vai precisar de mais empenho nessas fiscalizações. A rua é espaço público, não privado. Se o estacionamento dos prédios for transferido para as ruas, cabe ao poder público fiscalizar e multar, ou cobrar, como na Zona Azul, diz Botler, acrescentando que a fiscalização também aumentaria a inconveniência do uso do carro. “A falta de fiscalização nas ruas do Recife acaba por tornar o uso do automóvel ainda mais conveniente, com estacionamento irregular em calçadas, faixas de pedestres e ciclofaixas”, reclama.